quinta-feira, 26 de julho de 2012

Do uso e abuso da etimologia


carta a robinson bucci


Carta a Robinson Bucci


Robinson,


O Osmar lecionava gramática há mais de trinta anos quando eu o conheci no Universitário de Sorocaba. Como todos os professores “das antigas”, ele conhecia inúmeros desses casos semi-apócrifos que se contam de vez em quando para divertir e mistificar alunos e colegas. Um deles era sobre um professor muito presunçoso que se dizia capaz de responder a qualquer pergunta. Um dia, indagado sobre a origem da palavra “moleque”, não hesitou:

- Vem do latim “molocus”, pelo vulgar “molequis”.

O aluno que fez a pergunta rebateu:

- Professor, a palavra é tupi!

Osmar mostrava seu talento humorístico ao imitar a entonação pastosa do filólogo contorcionista e o triunfo escarninho do aluno de má fé. No final, ríamos todos daquela situação que arruinaria a reputação de qualquer mestre.

Como sói acontecer com as anedotas semi-apócrifas, era bom que os ouvintes extraíssem alguma lição de prudência prática como: “não tente ser o homem que sabia javanês”, ou “tenha a humildade de  admitir as lacunas de seu conhecimento”, ou “carisma não é tudo, um professor também deve estudar” ou, mais cinicamente, “conheça bem seu auditório, antes de tentar enganá-lo”.

O “causo” tinha lá a sua graça, mas o fato é que o aluno também estava errado. “Moleque” é palavra de origem banta.  É possível que Osmar não soubesse disso. Nunca o vi demonstrar interesse pelas culturas afro-brasileiras. Nesse particular, ele se contentava em fazer piadas - que hoje diríamos politicamente incorretas - com a cor negra do seu amigo e colega Dias, que ensinava matemática. Osmar, porém, era muito ladino e pode ser que ele estivesse testando os colegas...

Agora não importa mais. Osmar morreu há alguns anos, mas me lembrei da anedota quando encontrei na Livraria da Travessa a nova edição do Dicionário Banto do Brasil, do Nei Lopes. Eu estava com pressa de pegar a barca para ir comer bacalhau no Gruta de Santo Antonio, por isso resolvi comprar o livro na volta. Mesmo assim, de pé, no fundo da livraria, confirmei mais uma vez que “moleque” não vem do latim nem do tupi, mas do banto. E saí contente de ver a estátua do Pixinguinha, que era banto e foi moleque, como certos ancestrais meus lá no Recôncavo. Podem procurar em Candeias e Cachoeira de São Félix!

Apenas à noite é que fui percorrer o livro do Nei Lopes, sujeito que eu respeito muito. Na minha biblioteca, Kitabu foi parar entre o Mircea Eliade e o clássico do Granet sobre o pensamento chinês – minha clamorosa ignorância das culturas africanas faz com que elas pareçam muito distantes. Definitivamente ainda não aprendi a lidar com meus “inquices”. As aspas são marcas deste estranhamento. História para outra carta.

Volto ao dicionário do Nei Lopes. Muito bom, muito gostoso de ler, cheio de palavras que dá vontade de usar. Cheio também de lições sobre a maneira como são construídas as etimologias. Aí vão alguns  exemplos:

Chilique s.f. desmaio, lipotimia, síncope, ataque de nervos. A Nascentes (1966b) parece palavra expressiva. Para nós, é certamente de origem banta, haja vista os seguintes exemplos: *sulika (nhungue), ter vertigens; *etuliko (umbundo), derreamento, prostração; *hihlika (ronga), desmoronar-se, derreter-se.

Quando um estudioso de etimologia, como Antenor Nascentes, alega que uma palavra é de origem expressiva está confessando sua ignorância atrás de um discurso vazio (quando é que uma palavra não é expressiva?); está apoiando uma teoria equivocada sobre a origem das palavras (elas surgiriam como onomatopeias) e está limitando as fontes do português brasileito à matriz latino-lusitana e ao tupi. A contribuição das outras línguas é estrangeirismo; a contribuição africana só é admitida naqueles casos em que o conteúdo africano fica restrito a nomear práticas locais e étnicas – as coisas de negro.

Minhoca s.f. designação geral dos animais anelídeos, oligoquetos, sobretudo das formas terrestres. Do nhungue mu-nyoka, verme, bichinho para isca, da mesma raiz do quimbundo nhoka, suaíle nyoka, umbundo nhoha = cobra (de nhoha, enrolar-se). Veja a curiosa etimologia proposta por Silveira Bueno (1965c, p.288): “Minhoca – verme que faz buracos, que abre galerias ou vive em galerias < Mina = galeria subterrânea para surgir no campo inimigo. Palavra de origem ibérica.”

O verbete expõe bem o ridículo e a ignorância dos dicionaristas, sobretudo quando é preciso escavar as raízes e analisar o subsolo da linguagem corrente. Silveira Bueno, com todo o respeito, comeu terra e não viu a minhoca bem na sua frente, cego como estava pelo racismo disfarçado de busca de raízes ibéricas ou latinas para a língua portuguesa do Brasil. Se perguntássemos  ao Silveira Bueno de onde vem a palavra moleque, será que ele responderia que era do latim “molocus” pelo vulgar “molequis”?

Samba s.m. nome genérico de várias danças populares brasileiras; p. ext. a música que acompanha cada uma dessas danças; modernamente, expressão musical que constitui a espinha dorsal e a corrente principal da música popular brasileira. Teodoro Sampaio (1987b), sábio afro-baiano, dá como origem do termo, a partir de Batista Caetano, o tupi çama ou çamba. “cadeia feita de mãos dadas por pessoas em folguedo:  dança de roda”. No entanto, a roda das danças de samba não comporta mãos dadas e, sim, mãos batendo palmas, sendo uma característica essencial a umbigada ou a simulação dela. Observe-se que o léxico da língua cokwe ou tchokwe, do povo quioco, de Angola, registra um verbo samba, com a acepção de “cabriolar, brincar, divertir-se como cabrito” (Barbosa, 1989b). No quiongo, vocábulo de igual feição designa uma espécie de dança em que um dançarino bate contra o peito de outro (Laman, 1964 b). E essas duas formas originam-se da raiz multilinguística semba, rejeitar, separar. (Alves, 1951 b), remetendo ao movimento físico produzido pela umbigada, que é a característica principal das danças dos povos bantos, na África e na Diáspora. Q.v. também o bundo *samba, ferver, estar em ebulição; e o quimbundo *samba, rezar.

A partir do Romantismo, o tupi passou a ter o mesmo bom pedigree etimológico do latim. Então, vai o Teodoro Sampaio (“sábio afro-baiano”, como diz o Nei Lopes), olha as mulatas e negras se requebrando freneticamente nas ruas de Salvador e do Rio de Janeiro, corre para uma biblioteca e sai triunfante com a descoberta de que aquela dança negra e suada tem um digno nome tupi! Está resolvido o problema da etimologia: foi apenas o caso de encontrar uma homofonia e um campo semântico próximo. Mas o problema das etimologias é que dificilmente a busca do étimo vai dar um resultado claro e unívoco. Para começar, não há uma língua banta. Há sim, como diz o Nei Lopes no começo de seu Dicionário, um grupo de cerca de 500 línguas aparentadas abrangendo desde o Congo até a África do Sul, de Angola à Moçambique: ajaua, bemba, cuanhama, ganguela, iaca, Lingala, macua, nhaneca, nhungue, nianja, quicongo, quimbundo, quinguana, quioco (chokwe), ronga, suaíle, suto, tonga, umbundo, yangana, shona, zulu, só para ficar nas principais línguas. Procurar a etimologia da palavra “samba” é meter a mão neste palheiro e tentar puxar a agulha. Quem procura a nascente de um rio, encontra na cabeceira um sistema capilar de regatos. Só por convenção, um deles é considerado a Nascente. Um trabalho sério de etimologia não pode se esquivar desse emaranhado. O máximo que se pode fazer é dizer que naquela região em que a palavra “samba” pode remeter ao separar, ao cabriolar, ao ferver e ao rezar, está o samba. Neste ponto, o crioulo vai ficando doido.

Bem se vê que  Nei Lopes assumiu um trabalho bem difícil do ponto de vista da pesquisa e das forças culturais contra as quais polemiza: o racismo implícito no desconhecimento das culturas africanas; o mito tupinista que subsiste a despeito de ser perpetuamente desconstruído pela universidade; os equívocos entranhados a respeito da natureza da linguagem e  da sua capacidade de transformação, da relação entre som e sentido. Sobretudo os equívocos gerados pelo mito da Origem: de que cada coisa tem um princípio único que rege seu devir como uma espécie de nume tutelar. Nesse equívoco, Nei Lopes também cai, como acontece neste verbete:

Implicar v.t.i. (1) provocar, amolar, ENTICAR. (2) Intrometer-se, contender. O étimo tradicionalmente aceito é o latim implicare, “enlaçar”. Entretanto, a acepção do termo, para nós, é bem diferente da erudita (“embaraçar, enredar”), e até mesmo a regência: um é verbo transitivo direto, o outro é indireto. Permitimo-nos, então, tentar buscar o étimo no bundo pilika, constranger, pedir insistentemente, obrigar, forçar, exigir, reclamar, forcejar por, querer a toda força. Este vocábulo é, por sua vez, derivado de pili, incitamento, insistência, perseverança (Alves, 1951b).

No caso do verbo “implicar”, não vejo porque a origem latina deveria ser substituída pela suposta origem banta. Por que não admitir que a palavra “implicar”, tal como usada no português coloquial do Brasil,  tem dupla origem – latina e banta?  Para os estudiosos de etimologias, o étimo tem que estar num único lugar. É o que eu estou chamando de mito da Origem.

No Bailly Abrégé, eu encontro (e traduzo):

Étymos: 1. Verdadeiro, real, autêntico; adv. Étymon: realmente, autenticamente. 2. Subst.: tò étymon, verdadeiro sentido, sentido etimológico de uma palavra.

(Acrescento que, no verbete, os dois sentidos são abonados, mas o uso de tò étymon só aparece em exemplos da literatura grega mais tardia).

A própria palavra “etimologia” promete mais do que pode conceder: um arrazoado sobre a sentido autêntico, verdadeiro e real de uma palavra. Mas quando o sentido da palavra poderia satisfazer essas condições?

Somente se pudéssemos aceitar que cada palavra foi a designação primeira e unívoca de algo. Somente se pudéssemos aceitar que cada coisa tivesse uma identidade inconfundível e nunca tivesse recebido outro nome antes. Somente se pudéssemos aceitar que, no princípio, houve um batismo adâmico como aquele narrado em Gênesis 2, 19-20. Somente se pudéssemos aceitar que houve apenas um idioma original, em que cada palavra era o único nome  de cada coisa singular (portanto, o substantivo próprio seria a base de toda a linguagem).

São suposições em demasia. Se formos rigorosos, é preciso reconhecer que sondar a origem das palavras é tão  ocioso quanto examinar as origens de certas práticas sociais correntes, como dizia Nietzsche na Genealogia da Moral, Segunda Dissertação, 13:

Hoje é impossível dizer ao certo porque se castiga: todos os conceitos em que um processo inteiro se condensa semioticamente se subtraem à definição;  definível é apenas aquilo que não tem história.

Normalmente quem consulta um dicionário etimológico quer apenas satisfazer a curiosidade de saber se uma palavra vem do latim, do grego, do banto, do tupi ou sabe-se lá de onde. Não se trata de encontrar o sentido original e autêntico, o étymon, mas de entender retrospectivamente a deriva. Queremos apenas acompanhar um pouco do percurso acidentado dos usos de uma palavra até o ponto em que é possível remontar os seus elementos reconhecíveis. Não devemos acreditar que esses elementos possam esclarecer totalmente o uso atual, mesmo assim os percalços da linguagem despertam, pelo seu efeito de surpresa, uma disposição de pensar – como quando percebemos que as palavras gregas “nômade” e “nomos” (lei) tem a mesma raiz; ou que as palavras gregas para “prata” e “evidência” são aparentadas.  

Ocorre que é justamente o movimento caprichoso da deriva da linguagem que coloca em suspeição o valor explicativo das etimologias, o que me faz dar razão a Borges:

Escasas disciplinas habrá de mayor interés que la etimologia; ello se debe a las imprevisibles transformaciones del sentido primitivo de las palavras, a lo largo del tempo. Dadas tales transformaciones, que pueden lindar con lo paradójico, de nada o de muy poco nos servirá para la aclaración de um concepto el origen de uma palavra. Saber que cálculo, en latín, quiere decir piedrita y que los pitagóricos las usaron antes de la invención de los números, no nos permite dominar los arcanos del álgebra; saber que hipócrita era ator, y persona, máscara, no es un instrumento para el estúdio de la ética.  (Otras Inquisiciones, Sobre los clássicos)

A busca pela origem é componente tão fundamental da curiosidade humana que muitos de nós nos satisfazemos se, ao final de uma pesquisa etimológica, encontramos apenas um vago farrapo de homofonia ou uma raiz reduzida a uma única letra (a importância da letra H na palavra “whale”, em Moby Dick). Nem sequer pedimos sentido a esses cacos.

No “causo” contado pelo Osmar, o professor não explicava o significado da suposta palavra latina “molocus”. O Novo Dicionário Banto do Brasil diz que “luleke em  quimbundo significa garoto, filho; correspondente ao quicongo mu-léeke, criança, e da mesma raiz de nléeke (plural mileke), jovem, irmão mais novo.” 

Na origem de “moleque” há apenas uma criança. A questão é que a palavra diz muito mais do que isso, porém a etimologia não esclarece esse excedente de sentido, que é tudo o que realmente interessa.

Grande abraço!



segunda-feira, 23 de julho de 2012

Macabro






Carta a Ludmila Ciuffi


Lud,

Das suas peças recentes, o “Varal dos Enforcados” é a que teve a recepção mais estranha. A culpa é da obra, que tem assunto distante e pouco usual.  A pena capital por enforcamento é mero fato histórico no país em que vivemos e os enforcamentos coletivos existem apenas como imagens de outros lugares e de outras épocas (punição de ladrões no Antigo Regime, execuções coletivas na 2ª Guerra Mundial, vítimas da Ku Klux Klan). À medida que se dissipa a memória histórica dessa forma de punição, fica apenas o sentimento de inquietação que chamamos de “macabro”.
Durante as crises do horrível século XIV, a onipresença da Morte era figurada em uma sarabanda de esqueletos que se entrelaçavam, arrastando jovens e velhos, ricos e pobres, senhores e servos, guerreiros e camponeses, homens e mulheres, clérigos e leigos. Nas imagens dessas "danses macabres", não se tratava de conduzir os pecadores para as penas do inferno, mas de levar os vivos à vala comum da podridão.  Não havia a transcendência de um Juízo, apenas a  vertigem do absurdo e da vaidade de tudo o que existe. Não se mostrava o castigo e sim a aniquilação: sem discurso edificante, sem chamado à esperança,  tão somente o fim inevitável e anunciado.
“Macabro” era, portanto, o adjetivo que definia aquela coreografia fantástica que abolia todas as diferenças sociais. Com o tempo, passou a designar tudo o que se associava  à morte como denominador comum que rasura a individualidade. Por isso, não é o defunto que é macabro, mas o túmulo de pedra fria e inorgânica; não é o cadáver que é macabro, mas o necrotério em seu anonimato silencioso; não é o morto que é macabro, mas o campo-santo, com as flores que exalam cheiros roxos nas tardes de Finados. Não é o próprio corpo falecido que é macabro, mas suas relíquias e os relicários que as contém.  O defunto, o cadáver, o morto ainda são suficientemente singulares para nos recordar a vida que eles eram.

O macabro começa quando a erosão  desfaz os traços que ainda singularizavam um nome ou uma lembrança. O macabro vem quando, finalmente, uma segunda morte começa a desfazer as metonímias da primeira morte. Macabras são as lápides de nomes ilegíveis e as criptas de famílias sem descendentes; macabra é a fotografia de um falecido sem nome de quem restou apenas a imagem de um olho baço.
É inegável que há algo de macabro no "Varal dos Enforcados". Os “enforcadinhos” dançam uma “danse macabre” no anonimato de suas individualidades desfeitas, porém a encenação dessa dança nos faz rir. Não um riso escarninho ou cínico, mas um riso leve. É que os “enforcadinhos” não são imagens do desespero ou do fim inevitável. Eles tem graça! Aparecem dispostos num tipo de balanço infantil, sacodem ao mínimo movimento, lembram brinquedos e brincadeiras. O corpo de cada um deles é estilizado como um símbolo ou letra, formando uma palavra que devemos decifrar como no jogo de “forca”.
É preciso afastar dos “enforcadinhos” qualquer associação com o suicídio.  No mundo de tradição cristã, o suicídio por enforcamento é o que Judas Iscariotes praticou (Mateus 27, 3-8), por isso, o suicida enforcado é imagem da esperança que se foi. Ao lado da porta de entrada da Capela Scrovegni, em Pádua, Giotto pintou a esperança como alguém que alça voo e se eleva aos céus, ao passo que o desespero aparece como um enforcado, cujo corpo pende pesadamente. Esse enforcado conhece bem a gravidade, mas não conhece a Graça.
Os “enforcadinhos” do “Varal dos Enforcados” não são desesperados. A gravidade não lhes concerne, porque eles tem a graça, isto é, a leveza e o humor. Acredito que isso se deva à categoria de objeto à qual pertence o “Varal dos Enforcados”, assim como algumas das peças que você, Ludmila, produziu recentemente.
Desde o “Exercício Têxtil nº 5” – o busto de manequim que você mesma definiu como catártico-, você tem experimentado aplicar o trabalho de fio (lã, fibra vegetal ou metal) sobre suportes rígidos. Primeiro a “Janela com Sutiãs”, depois a “Cortina de Facas”. Em seguida, você mesma criou e mandou fazer suportes metálicos que realçam o peso e a tridimensionalidade, como o “Encalacrado” e a “Gaiola”. É nesta sequência que se insere o “Varal dos Enforcados”.
O severo busto de manequim, coberto de lã branca, traz uma pequena costura lateral em fio vermelho, da qual pende um grão de feijão, como um tumor enforcado. A peça forma um par com uma janela muito colorida, de cujas gelosias pendem sutiãs bojudos e alegres. Para quem não sabe, o par de objetos é um monumento à vitória sobre um tumor de mama.  Eles assinalam uma vontade de passar a limpo o medo e o sofrimento de um tratamento que deixou marcas físicas, que já cicatrizaram. O busto de manequim é quase a representação física desta cicatriz, assim como a janela é imagem de um desejo e de uma alegria. Para mim, esta janela é o pensamento que a cabeça invisível do manequim nunca deixou de pensar e desejar.
 A “Cortina de Facas” resulta do mesmo procedimento construtivo aplicado na “Janela com Sutiãs”: a moldura da janela é coberta pelo trabalho de lã; produtos industrializados são pendurados nos vãos no lugar dos vidros. Apesar de compartilharem o método de produção, as duas obras são muito diferentes em seu aspecto final e nos seus objetivos.
Ao invés da natureza catártica ou emocional evidente nas obras anteriores, “Cortina de Facas” tem algo de provocação, de cinismo e de humor negro, à maneira da violência estilizada nos filmes de Hitchcock e nos romances de Agatha Christie, ou das simpáticas titias homicidas em Arsenic and Old Lace, de Frank Capra.
No entanto, é uma violência que é neutralizada, que não fere ninguém. As facas apontam para o chão, não para quem as olha. Mesmo a disposição serial das faquinhas chinesas baratas tira delas o caráter mortífero que teria uma arma voltada contra nós. A violência não se dirige ao espectador, ela é narrada em 3ª pessoa de modo que a janela é a tela em que se projeta um filme noir. A violência também é anulada pelo caráter ritualístico e teatral da sua encenação. Diferentemente das armas de fogo, as facas, adagas, navalhas e espadas tem uma grande dignidade dramatúrgica e poética. São objetos mágicos e sacrificiais, que vem do mundo pré-moderno e ainda perpetuam a lembrança do sagrado. As faquinhas industriais made in China são, ao mesmo tempo, a evocação desse passado e a paródia dele.
No “Encalacrado”, muda o princípio construtivo e o tema. Estamos agora num diálogo entre o metal, que forma a estrutura sólida e rústica, e o fio metálico dúctil, que se enrola seguindo uma trilha caprichosa e amorosa, como a dança de borboleta em torno da flor.
Na obra seguinte, a “Gaiola”, não há dança; o princípio construtivo domina e cria uma estrutura premeditada em seus contrastes entre metal rígido e trabalho de linha, entre a jaula e a rede de segurança, que abriga o leve pêndulo cravado de agulhas sem pontas, como um coração que se defende, sem querer ferir ninguém.
Não consigo deixar de pensar que a “Cortina de Facas” e a “Gaiola” partem da mesma necessidade de apropriar-se dos materiais de construção (a janela, o ferro usado para armar o concreto) e dos objetos do plano doméstico (a faca, a agulha, a lã e a seda) reunidos para figurar um microcosmos  (o da casa, do lar, do espaço doméstico) em seu diálogo tenso com o mundo exterior. Essas obras criam membranas protetoras (redes e cortinas) que delimitam o fora e o dentro, sem nunca separá-los de fato.  As estruturas rígidas de metal definem contornos e áreas, não para enclausurá-las, mas como suportes de uma construção em andamento.  É uma casa que está sendo feita, de fios que se enroscam, de metais e de nós.

Do meu ponto de vista, o “Varal dos Enforcados” não destoa dessa necessidade construtiva. O suporte do varal é do mesmo ferro de construção da “Gaiola”, mas essa estrutura agora não delimita um fora e um dentro que conversam entre si.  Da trave de ferro pendem, em fios de lã, os cinco “enforcadinhos”. Eles são feitos de fios metálicos muito leves e se parecem com os homenzinhos de palito que as crianças desenham. O fato de que a estrutura do varal parece o suporte de um balanço reforça o ar infantil e brincalhão. Mas eles também se parecem com cruzes, letras e símbolos, o que me leva à minha hipótese.

Já disse que concordo que os “enforcadinhos” são macabros, porém eu vejo neles a mesma tentativa de neutralizar a violência que há na “Cortina de Facas”. Eles não são feitos para suscitar horror, mas para afastar ritualisticamente a violência do mundo. Eu acho que o “Varal dos Enforcados”, assim com a “Gaiola” e a “Cortina de Facas” são objetos apotropaicos, como as figas, as ferraduras atrás da porta e as fitinhas vermelhas que se amarravam nas crianças pequenas para afastar o mau-olhado e da qual pendem os “enforcadinhos”. Todos esses objetos visam esconjurar os imprevistos desastrosos, os acasos violentos, a falência da ordem que, a duras penas, conseguimos construir.

Os “enforcadinhos” são amuletos lúdicos, um pouco como o rosário meio herético que você, Ludmila, fez uma vez e pendurou na porta dos fundos de seu atelier. Eles vem do mesmo humor negro hitchcockiano da “Cortina de Facas” e estilizam uma forma de violência há muito banida do mundo em que vivemos. Eles evocam a lembrança de um mal distante, que pode ser figurado de maneira brincalhona, com os mesmo materiais seguros e mansos com que se faz uma casa.  




sexta-feira, 13 de julho de 2012

O dia do juízo





Carta a Irene Leonel


Irene,

Quando você me ligou da última vez, depois de anos sem nos falarmos, quis lhe mandar um e-mail com notícias atualizadas sobre meus filhos, a Ludmila, meu trabalho, minhas viagens e minhas leituras. Tudo o que não foi sequer mencionado no breve telefonema. Desisti logo porque odeio esse tipo de relatório e acho que meus amigos merecem mais do que informações burocraticamente circunstanciadas.
Nos tempos idos, eu lhe mandaria uma longa carta repleta de estilemas recém colhidos nas páginas de Nietzsche, estilemas que hoje me dão engulhos. Há uma vulgaridade de pregador de aldeia que se apodera de Nietzsche e mergulha certas suas obras no ridículo: ele grita demais e fala cuspindo, como Paulo de Tarso nas epístolas. Na adolescência, tentava imitá-lo salivando também, mas os anos me ensinaram boas maneiras. Havia mesmo assim uma verdade estilística no condoreirismo espasmódico de Nietzsche, bem como nas imprecações de Paulo: sua prosa é a dos solitários que adoeceram pelo desejo de serem amados e compreendidos, eles amam demasiado a posteridade e gritam para serem ouvidos pelos que ainda vão nascer. Eles acreditam ser portadores de uma mensagem que entreviram numa epifania. Na concepção evangélico-bismarckiana de Nietzsche, compor uma obra era declarar para os homens vindouros o advento de outro Reich. Como muitas das piadas que fez, aquela do Pai-Nosso rezado pelos alemães (“Venha a nós o nosso Reich...”) se volta com facilidade contra o próprio  autor. Parece ser uma triste sina de Nietzsche que sua seriedade fosse tida como piada e suas piadas retornassem como bumerangues inadvertidos.
Quando você e eu nos conhecemos, eu tinha 15 ou 16 anos. Eu sonhava em ser um portador, como Nietzsche e só não saía pregando e babando por causa do respeito que tinha por Marx e por Spinoza.
No quadro das urgências sociais, políticas e econômicas da década de 1980, ler Marx me salvou do profetismo, impondo as tarefas do presente: observação, análise, teoria. O marxismo vive dessa urgência, desse nervosismo diante do devir, dessa atenção de operador de radar perscrutando o horizonte. Um galo pode cantar a qualquer momento: pode ser o toque de alvorada da revolução ou, pelo menos, o sinal de que as galinhas vão botar ovos cujo valor de uso vai ser suprimido pelo valor de troca na forma de mercadoria, conversível em dinheiro, conversível em capital que alimenta a indústria moderna, que acumula mais-valia e gera um exército industrial de reserva, aguçando as contradições entre capital e trabalho, até o limite em que os lucros decrescentes levem ao colapso de todo o sistema. Portanto, é preciso ficar atento ao canto do galo...
Em data bem recente, eu me cansei do trabalho de operador de radar de galinheiro. Estava cochilando muito no serviço e, antes que o galo cantasse pela terceira vez, neguei Marx - aquele tipo de negação parcial que arrisca tornar-me papa da igreja marxista: primeiro, porque a negação sempre pode ser resgatada pela dialética na forma de superação que continua o processo; segundo, porque tornar-se papa é, desde o início, o prêmio concedido aos que negam. Bem-aventurados os que negam, pois deles será a Santa Sé! (Desculpe, Irene, mas o meu catolicismo em coma dá tênues sinais de vida  de quando em quando).
É mais difícil dizer o que eu via em Spinoza. Ele não me impunha tarefas prementes nem uma mensagem. Spinoza era e ainda é, para mim, um elucidador. Quando eu abro a Ética, sempre digo baixinho, à maneira de mantra, as palavras de Dante a Virgílio: Tu duca, tu signore, tu maestro. Mas isso é injusto, porque Spinoza não quer ser mestre nem senhor. Dito de outro modo, Spinoza tem as boas maneiras que Nietzsche fingia ignorar.  Tudo se passa como se Spinoza, como mercador de panos, mostrasse-nos o tecido do mundo, lado direito e avesso, e nos convidasse a desfazer as dobras para observar melhor os padrões. Não há nada além do tecido e das sombras criadas pela bizarrice das dobras.
Mas a metáfora do tecido não é boa porque supõe a existência do tecelão. Então, vem a maravilha: e se soubéssemos que o tecido se trama a si mesmo e as navetes vão de um lado para o outro sozinhas, às cegas? E se soubéssemos que aquilo que imaginávamos como padrões eram apenas configurações casuais e randômicas, como os desenhos das nuvens? E se soubéssemos que as aparentes aberturas para um outro mundo, para um além, fossem apenas rasgões e esgarçados do tecido em decorrência da sua falta de uniformidade já que as navetes operam cegamente? E se soubéssemos que todos os maravilhosos efeitos de organização cósmica e de sentido transcendente fossem apenas efeitos da nossa vontade de crer nesses efeitos? Por que tudo isso seria mais inadmissível do que supor um bondoso tecelão que engendra almas e corpos e os coloca para cumprir seus ciclos neste mundo?
Tanto a hipóteses do tecelão divino quanto a das navetes automáticas são absurdas. Mas entre os dois absurdos, eu escolho o que não me subordina à vontade de Deus. Como Lúcifer no poema de Milton, eu digo: Non serviam! E repito: Non serviam! Já me basta a obediência devida ao patrão que me remunera. Já me basta a obediência às leis que garantem um pouco de ordem social. Já me basta a obediência às convenções e rituais. Não preciso nem quero viver como agregado da transcendência, esperando os incertos favores de um tecelão invisível, que produz um tecido tão inepto. A hipótese das navetes automáticas tem o mérito de nos fazer compreender as imperícias do pano. A hipótese do tecelão cósmico gera problemas adicionais de teodiceia, que todos os religiosos de matriz judaico-cristã tiveram que resolver. Spinoza é a navalha de Ockam que elimina a teodiceia.
Daí a fonte das divergências que nos afastaram ao longo de todos esses anos. Eu e você fizemos escolhas opostas de muitas maneiras, mas você sempre teve a imensa generosidade de apoiar as minhas escolhas mais excêntricas.

Quando eu completei 40 anos, você me ligou e disse esperava que eu tivesse ido mais longe. Eu me senti mal porque você tinha todo o direito de me perguntar: e aí, meu amigo, onde estão as suas obras?  Enfim, a parábola evangélica dos talentos (Mateus 25, 14-19)  na escala de uma crise da meia-idade...  

Na época tive um pesadelo recorrente. Era o dia do Juízo e eu tinha que me justificar diante de um tribunal em que estavam Platão, Spinoza, Kant, Marx, Kierkegaard e Nietzsche. Eu seria sabatinado como um candidato num concurso. Eles iriam me perguntar: o que você fez com aquilo que nós te ensinamos? Tudo muito parecido com o pesadelo do velho professor em “Morangos Silvestres”.
Cinco anos se passaram. Você me ligou novamente e foi uma alegria ouvir a sua voz.  Tudo isso facilitou a decisão de por mãos à obra e me justificar (se a palavra convém), mas não diante de uma comissão de mortos notáveis e sim para os meus amigos – aquelas pessoas  cujas razões e argumentos me interessam e que gostaria de ouvir e de ler.

Irene, ainda não sei se produzirei alguma coisa. Sei o que eu não quero ser e aceito bem a forma menor que pode ter meu pensamento. Nada do livro único e obscuro depositado no templo de Ártemis; nada de diálogos platônicos (essa grande mistificação literária); nada de Hipotiposes Pirronianas,  nenhuma suma teológica ou ateológica; nada de Crítica da Razão Pura ou do Tractatus Logico-Philosophicus. Talvez ensaios à la Montaigne, talvez aforismos filosófico-humorísticos como Lichtenberg, talvez esboços aporéticos como os cadernos de Wittgenstein. Talvez eu componha listas de puzzles insolúveis. Talvez um romance-ensaio à maneira de W. G. Sebald, mas sem o devido talento. Tudo é questão de achar o tom certo, entre Millôr e Pascal, entre Francis Ponge e La Rochefoucauld.
Os filhos estão crescidos e cada vez dependem menos de mim. A Ludmila está fazendo coisas muito boas no seu ateliê. Se você  acompanhar meu blog, vai ler meu comentário sobre algumas delas.  Espero sua resposta e mais conversas.

Um abraço muito forte deste amigo antigo.

PS- As fotos do blog são todas minhas. O desenho, que já não pratico mais, me deu bom olho para a fotografia, mas minha filha sabe fotografar muito melhor.


quinta-feira, 12 de julho de 2012

Wenn ich auf dem Lager liege




Carta a Renato Alencar Dotta



Renato,


É maldade minha ter escolhido um verso tão doce para o assunto tétrico e desagradável do qual pretendo falar, mas hoje é dia de seu aniversário e seria muito bom comemorá-lo conversando, como já fizemos muitas vezes, sobre os horrores da História.

Você sabe bem que momentos de violência desmesurada deixam um rastro de memória, que é negado, distorcido ou recuperado de acordo com o alinhamento das forças vitoriosas e derrotadas após o evento traumático. O devir histórico molda a memória, e não o contrário. Porém a imensa plasticidade da memória individual e coletiva não apaga completamente essas etapas do ajuste de forças. Os resíduos do processo são as zonas de sombra em torno de certas palavras, de certas imagens, de certos gestos. Os horrores da história criam fantasmas.

Encontrei um deles quando percorria os poemas de Heine, em mais uma tentativa de aprender o alemão. Senti vontade de rir da trapaça que a história fez com o belo Abendlied que Mendelssohn compôs a partir do poema de Heine. Vindo de dois expoentes da vasta cultura judaico-alemã, o verso Wenn ich auf dem Lager liege parece uma piada grotesca da qual gostaríamos de rir, mas o horror nos inibe. Todo o sentido original dessa canção romântica tão lânguida foi corrompido e sua inocência desfeita pela Shoah. A canção ficou mal-assombrada.

No entanto, esse fantasma não surgiu por um acaso histórico infeliz. Fantasmas não escolhem os lugares que vão assombrar. O que é próprio da assombração é o vínculo e a repetição. O fantasma habita a cena do trauma. Essa ligação da assombração com o local é um dos componentes etimológicos do verbo inglês “to haunt”, que por sua vez deriva do francês “hanter”. Se o Online Etymology Dictionary estiver correto, no século XIII, o verbo era usado no sentido de frequentar habitualmente um local, de ocupar-se com uma atividade. O verbo compartilha a raiz das palavras “home” e “Heimat” (e, acrescento eu, do verbo “habitar” em português). 

Disso resulta que os fantasmas habitam a Heimat, como um leitmotiv habita uma ópera wagneriana.

Em outras palavras, a história pode ser imprevisível, mas nunca é randômica. A cada momento, o campo das possibilidades históricas está vincado por certas recorrências, como as cartas de baralho de um trapaceiro (La Scienza Nuova, de Vico, em epítome). Disso é que resulta a impressão de sentido do devir histórico, a miragem de propósito nos acontecimentos, o sentimento de um movimento. Os historiadores tentam agarrar qualquer fiapo ou retalho desse sentido para elaborar suas sínteses. O resultado é sempre um patchwork tão cheio de suturas quanto aquele feito pelo dr. Frankenstein...  Está bem, está bem! Sei que parece uma das catilinárias de Guerra e Paz contra os historiadores, mas não se preocupe. Hoje é dia de seu aniversário e não convém ficar insultando a profissão que você escolheu. Noutro dia, com mais tempo, falo todo o mal que penso dos historiadores (o que nunca me dispensou de lê-los com atenção, pelo contrário!).

Então a canção de Heine e Mendelssohn ficou assombrada, e não porque eles tivessem o pressentimento de que forças obscuras se moviam em direção à Shoah. Não se pode aplicar à Abendlied de Heine e Mendelssohn, a análise que Siegfried Kracauer fez do poder antecipatório do cinema expressionista alemão em relação à catástrofe que se aproximava.  Na época em que foi filmado o Gabinete do Doutor Caligari, as forças que viriam a engrossar o nacional-socialismo já estavam em plena atividade, ao passo que Heine e Mendelssohn vinham de uma comunidade judaica que ainda via possibilidade de integrar-se adotando uma identidade laica e apoiando o projeto de um Estado germânico unificado.

O destino dessa burguesia judaica culta estava intimamente ligado ao destino da Alemanha como nação, isto é, ao advento de uma entidade acima das divisões tradicionais que separavam os alemães étnicos em renanos, saxões, bávaros ou pomeranos. Desse ponto de vista, o nacionalismo da direita alemã era sobretudo uma união rancorosa de bairrismos e provincianismos contra o espírito realmente nacional da burguesia judaica alemã. O fato de que o capitão Dreyfus, judeu alsaciano, tenha sido condenado por supostamente fazer espionagem a serviço dos alemães não revela apenas o antissemitismo endêmico na França. É também uma percepção distorcida do papel importante que a comunidade judaica tinha no Estado alemão, papel do qual os nacionalistas da direita germânica queriam alijá-la. Essa direita não  passeava nas galerias sofisticadas da Unter den Lieden ou da Kurfürstendamm, ela preferia se reunir nas cervejarias de província para arrotar seus insultos. Estavam dispersos, seguiam patetas mais ou menos carismáticos, metiam-se em brigas, mas não tinham projeto porque não conseguiam ver além da viseira da sua comunidade natal. A bandeira unificadora veio com a noção de que os germânicos formavam uma comunidade de sangue e destino definida pelo pertencimento racial. O resto do caminho para o Lager, nós já sabemos.

Segundo Timothy Garton Ash, o povo do Livro foi exterminado pelo povo de Gutenberg. É uma pena que não possamos rir da boutade por causa do cheiro de carne em putrefação e de cabelos queimados. Além disso, discordo que tenha sido o povo de Gutenberg que assassinou os judeus. Tudo começou com hooligans e filisteus de cervejaria, gente que lia pouco e lia mal. Gente que sentia prazer em queimar livros e autores. Definitivamente não foi o povo de Gutenberg, apesar do Mein Kampf e de outras bobagens impressas.

Mas, o odor de besteira suja de sangue já começa a me sufocar. Volto a Heine.

O verso inicial da canção fala de um momento de repouso que induz à fantasia. O repouso e a fantasia foram desfeitos no decurso de pouco mais de século. Os termos consagrados – Holocausto e Shoah – também são palavras assombradas. “Holocausto” remete às práticas sacrificiais, portanto ao universo religioso que os judeus laicos e iluministas do século XIX imaginavam superado. O “Shoah” é um termo da língua hebraica, bem longe do  alemão que poetas como Heine sublimaram. As próprias palavras assinalam que a laicização e a integração cultural encontraram seu limite numa solução final.

A memória do horror passou por todos os recalques, negações e deformações e ainda não chegou à sua forma final, porque as forças ainda se agitam e compõem novas configurações. Em cada configuração, cabe à memória lembrar daquilo que lhe é solicitado que se lembre, e inibir as antigas versões das lembranças, que devem ser repudiadas como equívocos de interpretação.


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Dois incidentes recentes ligados ao Yad Vashem servem para mostrar o quanto a memória está sujeita às injunções políticas e religiosas. O primeiro foi noticiado no começo de julho:

O Yad Vashem, memorial do Holocausto de Jerusalém, suavizou neste domingo (dia 1º) um texto que acusava o Papa Pio XII de não ter feito nada pelos judeus durante o Holocausto, ao adicionar que nem todos concordam com sua atitude durante a Segunda Guerra Mundial.
Recentemente, ante as recomendações do instituto internacional Yad Vashem para a investigação sobre o Holocausto, o grupo de especialistas dedicado às atividades do Vaticano e do Papa Pio XII levou em consideração as pesquisas dos últimos anos, que apresentam um panorama mais complexo do que anteriormente", afirma a instituição em um comunicado.
Ao contrário do que se disse, não é o resultado da pressão do Vaticano", afirma o documento, em referência a um artigo do jornal "Haaretz", segundo o qual o Yad Vashem cedeu à Santa Sé.
Neste domingo, o texto explicativo que acompanhava desde 2005 uma fotografia do Papa Pio XII foi modificado, confirmou o porta-voz do Yad Vashem, Estee Yaari.
O texto antigo destacava as críticas a Pio XII, que era acusado de não ter agido contra as atrocidades infligidas aos judeus pelos nazistas. Ele era questionado sobretudo por não ter assinado, em dezembro de 1942, uma declaração dos Aliados condenando o extermínio dos judeus e de não ter atuado durante a operação de deportação dos judeus de Roma para Auschwitz.
O novo texto mantém as críticas a Pio XII, mas acrescenta os argumentos de seus defensores, que afirmam que a "neutralidade" do Papa possibilitou "um número importante de resgates clandestinos em diferentes níveis da Igreja". O conteúdo do texto foi motivo de conflitos entre o Yad Vashem e o Vaticano.


A outra notícia foi veiculada assim pela agência O Globo, em 11 de junho:


Mensagens antissemitas foram pichadas no memorial para o Holocausto de Yad Vashem em Israel na madrugada desta segunda-feira. A polícia israelense suspeita que os responsáveis pelo ataque sejam judeus ultraortodoxos que se opõem à existência do Estado de Israel.
Foram dez frases escritas em hebraico, como “Hitler, obrigada pelo Holocausto”, “Os sionistas quiseram o Holocausto” e “Se Hitler não tivesse existido, os sionistas o teriam criado”. De acordo com as pichações, os fundadores de Israel encorajaram secretamente a morte dos seis milhões de judeus pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial para conseguir a criação do Estado israelense em 1948.
Muitos judeus ultraortodoxos abominam o Estado israelense moderno, por acreditar que sua criação deve esperar a chegada do Messias.
Avner Shalev, presidente do Yad Vashem, se disse “chocado e estupefato por essa insensível expressão de ódio contra os sionistas e o sionismo”.
O porta-voz da polícia, Micky Rosenfeld, disse que os investigadores estão trabalhando principalmente com a hipótese de que os vândalos são “membros da comunidade de extremistas ultra religiosos”, mas ainda não descartaram outras possibilidades.
O museu e memorial de Yad Vashem foi inaugurado no topo de uma montanha de Jerusalém em 1953 e é frequentemente visitado por líderes estrangeiros que prestam homenagens no Salão da Lembrança.
Em um outro incidente durante a última noite, sete carros de árabes israelenses que moram no campo de refugiados de Shuafat, no leste de Jerusalém, foram furados. Um dos veículos amanheceu pichado com “Ulpana”, bairro israelense construído em Beit El, um território palestino privado da Cisjordânia, que recentemente recebeu a ordem de demolição de casas de colonos judeus.


Estou longe de conhecer e de entender o que se passa em Israel, mas vejo que a manutenção da memória da Shoah tem seus percalços. Diante disso, minha sugestão vai parecer cínica e corro o risco de ser chamado de antissemita, mas quase todo mundo hoje corre esse risco, mesmo os judeus.

É fato de que o turismo do horror prospera na Polônia e na Alemanha. Os campos de extermínio visitáveis tem até sítios na Internet: Auschwitz-Birkenau, Majdanek, Dachau, Sachsenhausen.

Minha proposta é:  por que nos limitarmos ao Holocausto? Por que não incluirmos visitas a Kátyn, às Fossas Ardeatinas, ao campo de massacre da Ustasha em Jasenovac, aos ossários das vítimas do Khmer Vermelho, a Ruanda, a Srebrenica, a Darfur?

Um passeio um pouco mais exótico seria visitar os experimentos inaugurais de extermínio praticados pelos alemães nas Ilhas Shark na Namíbia: o primeiro Lager.  É um episódio que deixou poucos traços de memória. Sintomaticamente o verbete da Wikipédia sobre as Ilhas Shark só existe em alemão (um texto mais longo) e em inglês, hebraico e polonês (que trazem aparentemente o mesmo verbete em versão curta). A memória de certos eventos é conservada em certas línguas e não em outras, mesmo isso é uma configuração de forças.

Percorrer esses cenários da violência desmesurada, diante da qual todo o esforço dialético fracassa retumbantemente, é uma ideia antiga que eu tenho desde a minha época punk, quando eu “curtia” as letras dos Sex Pistols e sonhava em fazer aquilo que Johnny Rotten diz em “Holiday in the Sun”:

A cheep holiday in other peoples misery
I don't wanna holiday in the sun
I wanna go to the new Belsen
I wanna see some history
'cause now i got a reasonable economy

Fim de transmissão. A gente se encontra num Stalag qualquer dia.

Um grande abraço neste dia dos seus 38 anos!




quarta-feira, 11 de julho de 2012

Um espectro




Carta a Murilo Medici Navarro da Cruz


Murilo,


Quando o nosso seminário foi suspenso sine die, eu confesso que estava cansado dos nossos impasses.  É verdade que eu sempre pensei que não importava muito onde iríamos chegar, desde que o percurso fosse bom, mas o labirinto de becos sem saída me aborrecia. Mais do que isso, ficou muito forte a impressão de “miséria da teoria” e não apenas da nossa teoria...

Já te contei que, como muitos latino-americanos católicos crescidos nos anos de chumbo, tive um breve namoro com a Teologia da Libertação então muito presente nas comunidades eclesiais de base. Minhas recordações dessa época são todas muito boas, mas a demanda de justiça social e de fraternidade não satisfazia meu desejo de entender os acontecimentos. Tudo o que eu sei é que rapidamente deslizei de Deus para o Mundo, que é o nome oficial do palco da História. Isso foi há trinta anos. Eu li a Contribuição à Crítica da Economia Política com o deslumbramento de uma revelação (então havia um método para apreender tanto o movimento histórico quanto a estrutura social!) e com uma ponta de desconfiança tanto teórica quanto prática, resultado da minha aversão ao comunismo soviético da era Brezhnev e ao tratamento dado ao movimento civil na Polônia.

Em 1983, ano do centenário da morte de Marx, o caminho para a Filosofia já estava traçado: eu queria desenvolver todas as ferramentas conceituais que permitissem entender a dinâmica das mudanças sociais nas sociedades ditas dependentes, como a nossa. Sinceramente achava que havia uma única chave que daria acesso à compreensão da crise econômica que o Brasil viveu nos anos 80 e da transição negociada entre poder militar e poder civil com alguma representação popular.

Para ficar à altura dessa tarefa, era preciso acompanhar a economia dos países capitalistas avançados (onde começava o processo de desregulamentação) e seguir os nexos de dependência com as economias latino-americanas fortemente estatizadas (e aqui o problema não era tanto a intervenção estatal na economia, da qual nossos empresários nunca reclamavam... o problema estava na natureza arcaica e autoritária do Estado – pelo menos é o que eu aprendi com o Cebrap).

Era preciso acompanhar também a filigrana das negociações políticas que conduziram à abertura e os percalços que adiaram a adoção de eleições diretas em todos os níveis. Ao mesmo tempo, o treinamento para filósofo exigia o estudo da história da filosofia através da leitura dos autores canônicos. Eu vivia num estado de apaixonada ilusão de onipotência própria dos adolescentes.

O início do curso de Filosofia em 1986 teve o efeito imediato de despertar-me do sono dogmático e do imperialismo teórico.  A insistência no rigor herdado da historiografia filosófica de Guéroult e Goldschimidt, com suas minúcias de close-reading, jogaram água nas minhas fantasias de teoria social. Reconheço a necessidade de rigor, mas esperneei o quanto pude contra o “Método” , como se dizia por antonomásia nos corredores do departamento. Mais tarde soube que quase todo mundo esperneava também, inclusive os professores.

Quando me tornei orientando de Oswaldo Porchat, sabia muito bem da sua reputação de professor exigente e de leitor rigoroso segundo o “Método”, do qual ele foi grande defensor e divulgador nos anos 60. Convivi com ele quase quatro anos naquela época em que os prazos do mestrado eram mais generosos. Foi nesse convívio que, finalmente, aprendi um pouco sobre o que é ser filósofo. Eu tinha um exemplo vivo bem diante dos meus olhos: abordagem rigorosa dos textos e dos problemas, argumentação precisa e pertinente, elaboração cautelosa das conclusões. Enfim, tudo o que se opõe à precipitação e à leviandade.

Ao terminar o mestrado, percebi que eu não queria ser filósofo. O convívio com Oswaldo Porchat reforçou em mim a sentença dura de David Hume: se um livro com pretensões teóricas não trata de lógica nem de empiria, então fora com ele!  Oswaldo Porchat me ensinou que uma atitude teórica que pretenda colocar o mundo vivido entre parênteses já começa mal. Mas, se a filosofia não tem mais o terreno privilegiado da vadiagem metafísica, se cabe apenas a estruturação da linguagem lógica e a observação e organização dos fenômenos, é melhor ir direto às ciências e deixar a filosofia como objeto de estudo de historiadores interessados naqueles indivíduos que ficavam se jogando contra os limites da linguagem, como moscas no vidro.

Então, no final dos anos 90, voltei ao meu ponto de partida, porque eu ainda precisava dar conta daquela antiga demanda por uma análise crítica das mudanças estruturais das sociedades capitalistas (centrais e periféricas). Na prática, isso implicava levar a literatura marxista a sério, mas os tempos eram outros e, como muitos, eu estava descrente.

Primeiro, pela debandada maciça dos intelectuais em direção ao polo liberal (seja a tradição do liberalismo político clássico, seja a tradição do liberalismo econômico de Hayek).   

Em segundo lugar, por causa das mudanças na perspectiva marxista. Num passado recente, os marxistas consideravam que a sociedade civil era apenas um nome que ocultava as desigualdades de classe no mundo organizado pelo poder violento e exploratório do capital. Por isso, o conceito de cidadania era motivo de derrisão. Mas a rejeição cada vez mais forte aos aspectos coletivistas do comunismo real levou a uma reavaliação positiva das minorias que reivindicam o reconhecimento de  seus direitos civis. As lutas pelo reconhecimento passaram a ser analisadas teoricamente pelos neomarxistas com ajuda da dialética hegeliana ressuscitada. A dialética do senhor e do escravo, que parecia ter sido superada pelas categorias econômicas materialistas de O Capital reapareceu como aspecto fundante do mundo social. Hegel retornou para colocar Marx de  ponta-cabeça!

Mas a dialética, Murilo! Como acreditar na dialética! Como aceitar que a mesma razão constituída no processo histórico seja capaz de aprendê-lo, colocando-se a cavaleiro do processo como se fosse o barão de Munchhausen? Como acreditar que haja pontos de vistas privilegiados que permitam vislumbrar a totalidade do processo? Como saber quais fenômenos fazem parte do processo histórico-social? Como aceitar acriticamente o próprio conceito de processo histórico-social, tão dependente de pressupostos iluministas e românticos, como o mito do progresso? São demasiados artigos de fé garantidos unicamente pela tradição e pela cara feia que fazem os próceres da esquerda quando alguém levanta o dedo para formular uma dúvida... A esquerda vigilante usa palavras como “reacionário” com a mesma finalidade purgativa com que a Igreja medieval falava em “hereges”.

O cético que sou suspende o juízo a respeito desses artigos de fé. O nietzschiano que há em mim se rebela e ri da promessa hegeliana de que as feridas do espírito se curarão a si mesmas, promessa que hoje faz parte do utopismo desavergonhadamente messiânico de certos autores que preveem tranquilamente o fim do capitalismo num futuro próximo indeterminado e acham que é preciso lutar para manter a esperança.  Como eu leio mais Spinoza do que Ernst Bloch, o princípio-esperança não é argumento que meu estômago aceite de bom grado, mas é a comida que se serve por aí nos bistrôs neomarxistas.

Quer dizer que nada se salva de Marx?

Eu aceito a tese de Karl Polanyi de que uma economia de mercado só é possível numa sociedade de mercado. Trata-se portanto de analisar a maneira como economia de mercado e sociedade de mercado se agenciam reciprocamente. Polanyi deu indicações preciosas que mostram que ainda cabe um exame das forças antagônicas que regem as relações sociais, dirigindo-as para interesses opostos mas não dissociáveis. Isso a tradição marxista fez muito bem.

Também me parece verdade que a análise do fetichismo da mercadoria e das metamorfoses do capital mostra que uma teoria social é possível, embora bem menos abrangente do que  gostaríamos. Talvez devamos nos contentar com a descrição das contradições objetivas que causam desequilíbrios sistêmicos e desistir da empreitada de desvendar as condições transcendentais de impossibilidade do capitalismo, na forma de tábuas de categorias corrompidas pela ontologia negativa do capital.

Tudo isso significa que voltei às minhas tentativas de teoria social?

Não. Isso tudo é o desfazer-se de uma ambição juvenil. À medida que envelhecemos, temos que jogar fora algumas ilusões para nos concentrarmos no que realmente está ao nosso alcance. Isto é um farewell ao livro com meu nome na capa que eu sonhava ver um dia traduzido e publicado pela editora Verso e transformado em mercadoria numa prateleira, ao lado daqueles autores-mercadorias que uma vez admirei.  Há quinze anos me despedi da filosofia, agora digo adeus à teoria social. Nada mais de Bouvard e Pécuchet: vou voltar ao meu livro sobre os subúrbios de São Paulo.

Quanto ao mais, um abraço pra Fabiana e pras meninas!




terça-feira, 10 de julho de 2012

Dois Destinos





Carta a José Emílio Major Neto



Zé,


Uma das delícias da vida extra muros academiae  é que podemos especular à vontade, à margem do currículo Lattes e fora do alcance dos petardos dos zelotas Fachmenschen que guardam a porta da lei e  medem o tempo pela frequência dos papers. 


Isso não é para mim e, se você também admira Montaigne, vai concordar:   “Je ne me tiens pas bien en ma possession et disposition : le hazard y a plus de droit que moy, l'occasion, la compaignie, le branle mesme de ma voix, tire plus de mon esprit, que je n'y trouve lors que je le sonde et employe à part moy. Cecy m'advient aussi, que je ne me trouve pas où je me cherche : et me trouve plus par rencontre, que par l'inquisition de mon jugement.” (Livro I, 10)

Faz tempo que  estou para te falar de uma comparação meio vadia, dessas que a gente anota para pensar a respeito mais tarde e a ocasião nunca chega (le hazard y a plus de droit que moy).  Nesses  anos em que esmiuçamos Dom Casmurro para nossos alunos que iam fazer as provas da Fuvest, eu sempre me comovi com um trecho do capítulo 142 (Uma Santa):

Entenda-se que, se nas viagens que fiz à Europa, José Dias não foi comigo, não é que lhe faltasse vontade; ficava de companhia a tio Cosme, quase inválido e a minha mãe, que envelheceu depressa. Também ele estava velho, posto que rijo. Ia a bordo despedir-se de mim, e as palavras que me dizia, os gestos de lenço, os próprios olhos que enxugava eram tais que me comoviam também. A última vez não foi a bordo.
- Venha...
- Não posso.
- Está com medo?
 - Não; não posso. Agora, adeus, Bentinho, não sei se me verá mais; creio que vou para a outra Europa, a eterna...
Não foi logo; minha mãe embarcou primeiro.”


Somos todos netos do Sérgio Buarque e conhecemos muito bem essa condição de “desterrados em nossa própria terra”. Por isso mesmo farejamos à distância qualquer traço de bovarismo cultural. 

Nosso ufanismo é um fenômeno reativo e compensatório, que sempre dependeu de canções do exílio escritas em Coimbra com epígrafes goetheanas,  de revistas patrióticas tupis  impressas em Paris, de galinhas verdes que cacarejavam anauê, achando que o comunismo era ideologia exótica, mas não o fascismo...Olha como o patriarca Alencar se retorce para nobilitar à la européene a paisagem daquele latifúndio do meio-oeste paulista mostrado em Til:

"Desenhava-se o pequeno e mimoso prado em oval alcatifado e com a alfombra de relva e cingido quase em volta pela floresta emaranhada, que a fechava como panos de muralha, cobertos de verdes tapeçarias e vistosas colgaduras, apanhadas em sanefas e bambolins de flores. À face oposta assomava a soberba colunata do Palmar que estendia-se até ali, formando arcarias góticas, fustes elegantes em estilo dórico e arabescos rendados de maravilhoso efeito."

A mata subtropical é um gobelin pendurado sobre a colunata dórica,  entre arcos góticos cobertos de arabescos!  Todo o ecletismo vitoriano  das revistas que Dona Georgina Cochrane comprava para o marido, na rua do Ouvidor , entre um sorvete e um chá, nas tardes suarentas. Puro Brasil! E mais não digo, pois a lira tenho destemperada e o veneráveis mestres Cândido e Schwarz já nos prestaram  imenso e patriótico serviço (não é ironia) ao passar a limpo essa trama de recalques localistas e ideias fora do lugar.

Volto à passagem de Dom Casmurro.  

José Dias, um pobre diabo brasileiro que adquiriu alguma cultura, sonhava com a Europa. Com certeza, uma Europa bem diferente daquela que os ricos e privilegiados de várias nações percorriam em seu grand tour ritual para ganharem o direito de se tornarem personagens secundários de romances de Balzac, arrastando sua pose de tédio pelos salões do faubourg Saint-Germain.

A Europa dos pobres-diabos com alguma cultura é a terra-mãe de todas os cânones artísticos e literários, cujo  árduo aprendizado  elevava o sujeito a interlocutor válido da grande conversação ocidental.  Uma Europa que era a materialização de uma perpétua journée de la patrimoine, iniciada quando o primeiro borra-paredes cuspiu ocre em Altamira ou naquele instante em que o touro raptou a irmã de Cadmo numa praia de Tiro.

Enquanto os ricos e privilegiados do Novo Mundo e da Rússia iam para a Europa para acertar seus ponteiros com a Zivilisation, os pobres-diabos queriam respirar um pouco da Kultur, mesmo nas condições do mais vulgar filistinismo (o que seria o caso de José Dias). Trata-se de uma vontade de estar, por alguns momentos, no coração do motor imóvel que gera o turbilhão da história.

A Europa dos pobres-diabos não admite o tédio nem o desprezo, provas cabais de uma ignorância que só poderia ser justificada com pretextos macunaímicos (mas, pergunto eu, será que a civilização europeia esculhamba mesmo a inteireza de nosso caráter?)

Na fala do pobre-diabo José Dias brilham todas as esperanças de nobilitação e de superação do meio cultural ralo, esperanças próprias de quem se sabe mero agregado na grande conversação ocidental. O que há de comovente na frase de José Dias (a outra Europa, a eterna) é aquela confissão que eu e você não temos coragem de fazer, por vergonha do nosso próprio bovarismo: que o nosso modelo de transcendência, o nosso sonho de Paraíso é o grande museu de tudo, o boulevard infinito, as estantes repletas de volumes encadernados em marroquim. A Europa para o homem culto das Américas e da Rússia é o nome de uma nostalgia dos cânones.

Agora os cânones foram desfeitos pelas poderosas investidas do movimento transnacional do capital. A modernização é a incorporação da Zivilisation mundializada, mas fortemente dominada pelo novo éthos empresarial norte-americano, não mais aquele de Ford e Rockfeller, mas o de Jobs e Zuckerberg.

Os cânones eram articulação de forças ligadas ao habitus (no sentido de Bourdieu), ligadas a instituições (o museu, a biblioteca, a academia, a conversa de café), ligadas à disciplina intelectual (a leitura, a escrita, o pensamento, a peregrinação cultural). Uma vez desfeitos ou corroídos os cânones, essas forças represadas se liberam de maneira caótica: elas nos levam à exploração de novas direções, mas também produzem desprezo pelo passado, tédio, desorientação, bobagem, impostura intelectual. A deriva niilista borra a legibilidade e promove desleitura. Quem tenta se salvar se apega às migalhas de filosofia daqueles livrinhos que atulham as livrarias, que deveriam todos se chamar Pão partido em pequeninos, como o livro do Pe. Bernardes.

Esse conflito entre a moribunda Europa dos cânones e o nova Zivilisation destituída de transcendência já estava no horizonte russo das décadas de 1860 e 1870, assim como estava no horizonte de Sousândrade no Inferno de Wall Street.

Você deve se  lembrar daquela sequência de Crime e Castigo, (capítulos 5 e 6 da sexta parte): Svidrigáilov tem uma última conversa com Raskólnikov numa taverna; é rejeitado firmemente por Dúnia, sai pelas ruas geladas às margens do pequeno Nieva. Ele encontra um bombeiro judeu, que lhe pergunta:

"- Que procura por aqui? - disse, sem se mexer e sem mudar de posição.
 - Eu, nada, meu caro. Bom dia - respondeu Svidrigáilov.
- Isto não é lugar...
- Eu, meu amigo, vou para o estrangeiro.
- Para o estrangeiro?
- Para América.
- Para América?
Svidrigáilov puxou o revolver pôs uma bala no tambor. Akhiles franziu o sobrolho.
- A que propósito vem essa gracinha? Isto não é lugar.
- E por que não é lugar?
- Porque não.
- Bem, meu amigo, tanto faz. É um bom lugar; se te perguntarem, dirás, com mil diabos, que fui para América.
Apoiou o revólver sobre a fronte direita.
- Ah, isso não, aqui não é lugar! - gritou Akhiles, abrindo cada vez mais os olhos.
Svidrigáilov puxou o gatilho....
"


É, Zé. Na nossa condição de professores de literatura, olhamos cheios de nostalgia e admiração a época dos cânones e buscamos, amontoados entre os turistas, o último pedaço de normatividade artística que pode ter uma coluna dórica. Mas, não existe mais nem céu nem inferno para nós, não há mais motor imóvel de onde emana a ordem. Só existe agora o nomadismo tresloucado do capital, o íncubo das nações e das culturas, que responde pelo nome genérico de AMERIKA, mesmo quando se trata da China.