terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Lúgubre isla me alumbrará continental #2








C U S C O




A chegada
Certa hora da madrugada, com dor de cabeça e fazendo força para puxar o ar, fui ao banheiro e abri pequena ventana. O ônibus havia diminuído a velocidade ao passar por um posto da polícia. Estava gelado lá fora. De longe viam-se as luzes apagadas de uma cidade, talvez Arequipa. Estávamos numa passagem da cordilheira, a mais de quatro mil metros de altitude, rumo a Cusco, que alcançaríamos ao amanhecer.
Tina nos esperava na rodoviária, fez algumas recomendações e deixou-nos no saguão do hotel. Já era meio-dia quando vi o primeiro trecho de muro inca. “Eram maiores, e mais estranhas do que eu imaginava as pedras do muro inca; borbulhavam sob o primeiro andar caiado, que, pelo lado da rua estreita, era cego. Lembrei-me, então, das canções quéchuas que repetem constantemente uma frase patética: yawar mayu, rio de sangue; yawar unu, água sangrenta; put-tik’, yawar k’ocha, lago de sangue que ferver; yawar wek’e, lágrimas de sangue. Não seria possível dizer yawar rumi, pedra de sangue, ou put’tik, yawar rumi, pedra de sangue fervente? Era estático o muro, mas suas linhas todas fervilhavam e a superfície era cambiante, como a dos rios no verão, que tem um cimo assim, no centro do caudal, que à zona temível, a mais poderosa. Os índios chamam de yawar mayu esse rios turvos, porque exibem, sob o sol, um brilho em movimento, semelhante ao do sangue.
- Put’tik, yawar rumi! – exclamei diante do muro, em voz alta”. (1)


As derrotas recentes
A orgulhosa capital do império inca foi ocupada pelos invasores espanhóis no 14 de novembro de 1533. Os palácios e templos foram demolidos e sobre os fortes muros de pedra se ergueram as construções coloniais caiadas que cercam a Plaza Mayor. Foi num canto dessa área ampla e central que Tupác Amaru II, líder da grande rebelião anticolonial de 1780, foi desmembrado vivo por quatro cavalos. Na época em que mexicanos e peruanos lamentavam os 500 anos da chegada dos europeus à América, foi inaugurada a estátua do inca Pachacútec, que desafia a larga fachada da catedral. De nada valeu, contudo, invocar a tutela do criador do Tahuantinsuyo. Outros invasores continuaram a chegar e a ocupar, quase sem resistência, a velha cidade, a começar pela sua Plaza de Armas. Hoje os folhetos turísticos avisam que “nas proximidades desta praça é possível encontrar tudo de se que necessita: existem diversos ATM’s, lojas de equipamento para trilha (para quem for fazer a trilha Inca), restaurantes, Starbucks para aqueles que não ficam sem um café ou sem wifi, McDonald’s, além da própria praça ser um ponto turístico”. 
Do alto da colina, entre os enormes blocos da muralha de Sacsayhuaman, os guias fazem piada com os turistas americanos dizendo que o lugar se chama “sexy woman”. O áspero ruído das risadas desperta o apu adormecido na montanha. Irritado, ele envia a chuva fria que, felizmente, põe fim ao passeio. 

O valor de uma palavra
Os cusquenhos de estirpe e os migrantes que vivem nas ocupações irregulares nos morros circundantes têm razões para se alegrar com o movimento de dólares trazidos pelos mochileiros norte-americanos que seguem para o lago Titicaca ou para Machu Picchu. Os negócios prosperam, mas um índio velho resmunga e lança pragas em quéchua atrás da estátua de Pachacútec. Da língua quéchua, a única palavra que aprendi foi “mánan”, que significa "não". Pois é “mánan” que, em voz alta, eu digo para o guitarrista gringo que toca “Blowing’ in the Wind” na escadaria da catedral. Pois é “mánan” que, em voz alta, eu digo para o ridículo monumento a Pachacútec inaugurado na presidência de Alberto Fujimori, o chefe da camarilha de assaltantes neoliberais da coisa pública. Pois é “mánan” que digo ao peruano que, repete mecanicamente o anúncio de um bar no bairro alto, com música ao vivo e grande oferta de cervejas belgas. “Mánan”. “Mánan”. “Mánan”. E sigo repetindo a única palavra quéchua que sei. A mais útil palavra de qualquer idioma. A palavra decisiva que Lúcifer disse a Deus num momento de lucidez. “Mánan”

O que restou da Cusco com que eu sonhava
A gente toda está certa. O erro é meu. Eu é que venho em busca de um mundo perempto, de uma Cusco sonhada sobre algumas fotografias de Martin Chambi. Caminhando pela cidade, eu a encontro aos pedaços descendo à noite a Cuesta de San Blas, imaginando o pequeno Ernesto dos Rios Profundos repetindo seu mantra para as pedras de sangue fervente junto ao muro da velha sede do arcebispado. Ou no exemplar da Nueva Corónica y Buen Governo, de Guamán Poma de Ayala, que adquirimos numa livraria de esquina perto do convento de Santa Catarina. Ou nas pedras do santuário de Tambomachay, onde se pode ouvir a música da água se elevando acima do rumor dos visitantes. Ou no átrio chuvoso do convento das Mercês. Ou na cripta da catedral, onde uma pequena capela guarda uma parte das cinzas do Inca Garcilaso de la Vega, trazida desde o seu túmulo na catedral-mesquita de Córdoba, que tínhamos visitamos um ano antes.  
De resto, evitamos sair à noite. Parece que as pessoas costumam urinar nas pedras incas. No saguão do hotel lemos as últimas notícias. O barril do petróleo cai a menos de US$30; o preço internacional das commodities desaba. Venezuela e Rússia estão em dificuldades. No Brasil, o governo Dilma Rousseff está sob o forte cerco dos grupos de oposição. Começa a disputa eleitoral para presidência do Peru.
O mundo está bem. Bons sonhos, vendilhões de Cusco!


(1) José María Arguedas, Os Rios Profundos, Companhia das Letras, São Paulo, 2005, capítulo 1




Cusco, a cidade-jaguar, no centro das quatro direções do Tahuantinsuyo




A catedral vista da torre da igreja da Companhia de Jesus



Plaza Mayor: ao centro, a estátua de Pachacútec. 
Abaixo, a cruz de pedra no gramado indica o lugar da execução de Tupác Amaru II


A igreja da Companhia de Jesus junto à Plaza Mayor



Na saída do convento das Mercês em direção a Portal Belen



O convento das Mercês


O mosteiro de São Domingos construído sobre o templo de Quri Kancha



Imigrantes bolivianas



Os muros incas que descem do bairro alto



O muro inca do antigo Palácio do Arcebispado



Avenida El Sol: ao fundo a Cordilheira dos Andes


O pórtico da Plaza  Regocijo



O apu manda chuva sobre Sacsayhuaman 


Tambomachay











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