A R O T A D A S H U A C A S
Trujillo, El Brujo, Chiclayo, Ferreñafe, Lambayeque
1.
Nós
nos esticamos o quanto pudemos no fundo do ônibus-leito. Ludmila está resfriada
e logo adormece. Entre cochilos e ausências, assisto ao mais recente filme da
série Missão Impossível. Bem depois da meia-noite, eu acordo e
tento saber onde estamos. A escuridão é total. Não há placas
indicativas, apenas o alto vulto negro e indistinto da cordilheira. O veículo
que saiu de Lima vai muito rápido pela Panamericana Norte rumo ao grande deserto
de Sechura. Chegaremos em Trujillo pela manhã, mas estamos muito longe ainda. À
nossa direita, em algum ponto nas trevas do vale estão as ruínas de Caral, a
cidade mais antiga do continente, contemporânea de Uruk e das primeiras
pirâmides do delta do Nilo. Bem mais ao fundo, na serra, fica Cerro de Pasco.
Lá se travou a guerra silenciosa, contada por Manuel
Scorza, dos comuneros contra a aliança que unia os gamonales (potentados
locais com poder político e econômico) e as grandes empresas norte-americanas
de mineração, com o propósito de apropriarem-se das terras de uso comum dos
povos indígenas. Sobre essa disputa, que dilacerou a história peruana ao longo
do século XX, Mariátegui afirmava em 1928: “La cuestión indígena
arranca de nuestra economia. Tiene sus raíces en el régimen de propriedade de
la tierra. Cualquier intento de resolverla com medidas de administración o
policía, com métodos de enseñanza o con obras de vialidad, constituye un
trabajo superficial o adjetivo, mientras subsista la feudalidad de los
gamonales (...) Esta liquidación del gamonalismo, o de la feudalidad,
podia haber sído realizada por la República dentro de los princípios liberales
y capitalistas. Pero por las razones que llevo ya señaladas estos princípios no
han dirigido efectiva y plenamente nuestro processo histórico (...) El
pensamento revolucionário, y aún el reformista, no puede ser ya liberal sino
socialista”. (1)
O
"problema da terra", agravado por governos entreguistas, levou
à radicalização da esquerda peruana nos meios militares e
intelectuais. No final da década de 60, o general esquerdista Velasco Alvarado
deu um golpe de Estado e empreendeu uma reforma agrária. Na mesma época, o
professor de filosofia Abimael Guzmán fundou a organização maoísta Sendero
Luminoso, que dominou pelo terror grandes porções da serra e da selva
durante os anos de 1980.
O
medo difundido pelos atentados e incursões violentas do Sendero estava
no auge quando arqueólogos descobriram, no norte do país, a tumba de um chefe
mochica que controlou a região de Lambayeque entre os séculos II e III d.
C. A riqueza dos materiais, a abundância de artefatos e a sua
fatura finíssima, que concorriam com os tesouros de Tutancâmon ou com o
exército de terracota das tumbas imperiais de Xian, despertaram a atenção do
mundo para aquele que passou a ser chamado de "Senhor de
Sipán". Esse achado e a eleição de Alberto Fujimori em 1990 marcam
um ponto de inflexão na avaliação do Peru no cenário internacional. Apesar da
persistência do terror do Sendero Luminoso e das consequências
sociais da política neoliberal e globalizante iniciada nessa época, essa
política parece ter facilitado a entrada de recursos estrangeiros
destinados ao prosseguimento das pesquisas. Em 2006, outra equipe descobriu,
num recinto da Huaca de Cao Viejo, o fardo funerário completo e
opulento de uma chefe mochica, a Dama de Cao, que governou o vale do Chicama no
século IV.
Além
do assombro internacional, esses achados espetaculares revelaram a importância
e complexidade da cultura mochica, que floresceu na costa norte até o século
VII e cujos monumentos mais conhecidos são as huacas, grandes plataformas
piramidais feitas de adobe, que serviam como centro de rituais e de
sepultamentos dos chefes. É para o território das huacas moche que o nosso
ônibus avança enquanto dormimos nesta madrugada de 21 de janeiro.
2.
Quando
Pizarro, num lance de ousadia traiçoeira, capturou o inca Atahualpa em
Cajamarca em novembro de 1532, o império moche já estava extinto há mil anos. A
povoação que Pizarro e seus companheiros fundaram na costa foi chamada de
Trujillo em homenagem ao pueblo espanhol misérrimo em que tinham nascido. O
lugar é um dos poucos vales a raiar de verde a aridez que se estende até Piura.
Em cada um desses vales, rios magros que descem das serras provocam, de tempos
em tempos, inundações que garantem a fertilidade das várzeas onde se plantam
hortaliças, legumes e frutas. Um desses rios, o mais próximo de Trujillo, é o
Moche. Na sua margem esquerda, perto da foz, há uma pequena elevação rochosa, o
Cerro Blanco, junto ao qual se erguia uma cidade entre duas huacas, a do Sol e
a da Lua. Os habitantes de Trujillo e de todo o departamento da Libertad ainda
guardam os traços dessa gente, cujas feições ficaram registradas nos huacos,
vasos que reproduziam rostos com exatidão naturalista. Até há pouco
tempo, ser chamado de “cara de huaco” era um insulto racista contra os que não
tinham aparência caucasiana, contudo a atenção lograda pelas descobertas do
Senhor de Sipán e da Dama de Cao trouxe um certo prestígio e orgulho aos
moradores de uma região que sempre esteve distante do cosmopolitismo de Lima e
nunca pôde reivindicar o legado vivo da língua e da cultura quéchua, em torno
da qual foi-se constituindo a identidade do Peru profundo na literatura e na
arte.
3.
O
turismo norteño ainda é simpaticamente pessoal e amadorístico.
Lucio, nosso motorista, é baixote, robusto e acobreado como os rostos dos
huacos. Ele nos leva para a Huaca de la Luna e para as ruínas da imensa cidade
de adobe de Chan-Chan, capital do povo chimú, que foi conquistado pelo império
inca no século XV. No dia seguinte, visitamos o complexo de El Brujo, um largo
platô à beira-mar, cercado pelos canaviais que crescem abundantemente no vale
do Chicama. Aí se erguem três huacas: a Huaca Prieta, na verdade, um enorme
depósito de detritos acumulados cinquenta séculos antes de Cristo; a Huaca
Cortada e a Huaca Cao Viejo, onde foi descoberta a tumba da Dama de
Cao. No terceiro dia, pegamos um ônibus que, por quatro horas, atravessou
o deserto costeiro, para chegar a Chiclayo, de onde fomos conduzidos para
vários museus e sítios arqueológicos até chegarmos à instituição que guarda os
achados das tumbas reais de Sipán. O grupo que acompanhavámos era formado quase
totalmente por peruanos. Os únicos estrangeiros éramos Ludmila e eu e uma
família equatoriana vinda de Loja. Apesar da nossa presença ou por causa dela,
o guia exaltou - para seus compatriotas peruanos - a capacidades artísticas e
intelectuais dos ancestrais moches e lembrou que os peruanos não deveriam ficar
deprimidos por serem de baixa estatura e mais pobres do que os brasileiros,
chilenos e argentinos.
Esses
museus novos que visitamos - o das Huacas Moche, o de Cao Viejo, o de Sicán, o
de Túcume e o mais esplêndido de todos, o das Tumbas Reais de Sipán, todos
construídos com verba estrangeira - são os novos altares da Pátria peruana, que
vão tomando o lugar antes reservado aos bronzes do Coronel Bolognesi e aos
sítios em que Simon Bolívar parou para beber água. Para o visitante
estrangeiro, é fascinante assistir a essa reconfiguração em ato da identidade
de uma nação. No caso do Peru, os vínculos imaginários da nacionalidade são
desafiados pela própria variedade geográfica, que suscitou e ainda suscita respostas
culturais e materiais muito diferentes na costa, na serra, na puna e na selva.
Tal diversidade é ainda mais acentuada pela ocupação antiquíssima do
território: o Peru é um dos seis berços da civilização humana, junto com a área
olmeca no golfo do México, o vale do Nilo, a Mesopotâmia, o vale do Indo e o
vale do Yang-Tsé. Acrescente-se a isso, o problemático legado ocidental,
europeu e espanhol, que está sempre presente, a começar pelo orgulho com que os
peruanos alegam falar o melhor castelhano da América, a despeito do repúdio
declarado e sincero à conquista espanhola. Esse imbroglio - tão familiar aos intelectuais de toda América Latina (cf. a postagem Dois Destinos) - foi assim explicitado por
Mariátegui: “No faltan quienes me suponen un europeizante, ajeno
a los hechos y a las cuestiones de mi país. Que mi obra se encargue de
justificarme, contra esta barata e interesada conjetura. He hecho en Europa mi
mejor aprendizaje. Y creo que no hay salvación para Indoamérica sin la ciencia
y el pensamento europeos u occidentales. Sarmiento que es todavia un de los
creadores de la argentinidad, fue en su época un europeizante. No encontro
mejor modo de ser argentino”. (2)
4.
O
dia 24, nós o passamos todo no hotel. Na sacada do quarto, Ludmila lê o
exemplar de Crônica, de Guamán Poma, que compramos em Cusco,
enquanto eu acompanho as lutas entre Huáscar e Atahualpa no livro de Maria
Rostworowski, ainda indecisos se vamos fazer ou não a viagem a Cajamarca.
Também acompanhamos o noticiário: Keiko Fujimori, candidata às eleições
presidenciais prometeu que não concederá indulto ao seu pai, o ex-presidente
Alberto Fujimori; a Operação Lava-Jato no Brasil é acompanhada com atenção
pelos peruanos porque a empreiteira Odebrecht também financiou campanhas no
país; no Brasil, 48 cidades vão cancelar os festejos de Carnaval por causa da crise
econômica, da dengue, da zica e do chikungunya; Christine Lagarde, diretora do
FMI, avisou que o crescimento mundial em 2016 será modesto e desigual; os
internautas de todo o mundo estão ansiosos pelo retorno da série Arquivo X na
próxima segunda-feira, 25 de janeiro de 2016.
À
noite, sentamo-nos para tomar chilcanos junto à piscina, sentindo o vento do
Pacífico agitar as palmeiras. Do fundo do hotel vê-se o alto do Cerro Blanco
iluminado pela lua cheia. É domingo, dia do Senhor. O hotel está quase vazio.
Espalhado na chaise longue, eu sonho com uma longa procissão de
prisioneiros que serão sacrificados ao deus da montanha.
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(1)
José Carlos Mariátegui, Siete Ensayos de Interpretación de la Realidade
Peruana, Editorial Gorla, Buenos Aires, 2004 pp. 47, 49-50
(2)
Idem, p. 23-4
Huaca de la Luna em Trujillo
O Cerro Blanco, junto à Huaca de la Luna
Os vestígios da antiga cidade mochica. Ao fundo a cidade de Trujillo
As paredes de adobe da Huaca de la Luna
Os grandes frisos da Huaca de la Luna
Os frisos com a imagem de Ai Apaec, o deus degolador
O grande mural cosmológico da cultura moche
Monumento à Liberdade na Plaza de Armas de Trujillo
O balneário de Huanchaco.
Ao fundo, o Cerro Campana, montanha sagrada dos moches
Os dragões que ornamentam a parede externa da Huaca del Arco-Iris
O sítio arqueológico de Chan Chan, centro da cultura chimú
Complexo arqueológico de El Brujo. Ao fundo, a Huaca Cortada
A Huaca Cao Viejo no complexo arqueológico de El Brujo
Um dos recintos da Huaca de Cao Viejo
A tumba da Dama de Cao
A rodovia Panamericana Norte em direção ao deserto de Sechura
Os algarrobos do Santuário Histórico Bosque de Pomac em Ferreñafe
Batán Grande: complexo arqueológico da cultura sicán em Ferreñafe
Algumas huacas de Batán Grande
Museu das Tumbas Reais de Sipán em Lambayeque |
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