quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Lúgubre isla me alumbrará continental #3







D U A S   J O R N A D A S




 
O Vale Sagrado

Luís Miguel se pôs a cantar um bolero. Somos doze no micro-ônibus. Silvério, que dirige, Edith, a nossa guia, um jovem casal norte-americano de origem peruana, Ludmila e eu, a moça de Cingapura, três inglesas, um dinamarquês e Luís Miguel, que se pôs a cantar um bolero. Ele é mexicano, trabalha em Houston e está na América do Sul pela primeira vez. É um tipo simpático e acredita cantar bem, embora seja apenas desinibido. Somos doze no micro-ônibus que saiu de Cusco. Pouco adiante de Tambomachay, paramos no pueblo de Corao. É preciso prestigiar o trabalho dos artesãos e artesãs locais que expõem numa espécie de cancha. Todos entram. Eu fico junto aos veículos parados para ouvir os passantes que conversam em quéchua. Meia hora depois todos voltam, mas ninguém comprou nada. 

O veículo para num mirante donde se pode ver um trecho gloriosamente verde de plantações na várzea do Urubamba. Mais um pouco estamos nas ruínas de Pisac, a mais antiga cidade inca. Os caminhos são íngremes e estreitos. As pedras não eram ainda talhadas com a precisão monumental dos muros de Cusco, mas os terraços concêntricos, ao descer a encosta, formam um anfiteatro descomunal que captura a atenção e convida ao sonho das eras perdidas.

Na vila ao pé da montanha, outra parada para visitar as lojinhas. Ludmila e eu nos juntamos ao grupo que ouvia Chrystian, o dinamarquês, contar - com perfeito sotaque de Richmond upon Thames (é o que comentaram as inglesas) -, as coisas diversas e estranhas que ele já tinha degustado em suas viagens, inclusive um hambúrguer de testículos de camelo num vilarejo do Sudão.  Antes de entrarmos no micro-ônibus avisei a Luís Miguel que seria bom que ele não cantasse para nos distrair durante a viagem. Sem querer desanimá-lo excessivamente, expliquei que ele e Chrystian eram sujeitos corajosos, capazes de apreciar músicas e sabores que seguramente não eram para todos. A moça de Cingapura, que não falava espanhol, perguntou-me, em inglês standard, o que eu havia dito a Luís Miguel. Quando lhe contei, ela aprovou minha opinião com indisfarçável e vivo alívio. Luís Miguel sentou-se um pouco amuado junto ao dinamarquês e não cantou mais.

Depois do almoço, Ludmila foi molhar as mãos no Urubamba, como já fez em tantos rios e riachos ao longo dos anos. As águas eram barrentas, a corrente era forte e a superfície exasperada pelas ondulações. Ludmila se acomodou sobre uma pedra lisa e ficou ouvindo o rio, que cantava sua melodia fluvial a caminho do Amazonas. “Os índios chamam de yawar mayu esses rios turvos, porque exibem, sob o sol, um brilho em movimento, semelhante ao do sangue [...] Por que nos rios profundos, nesses abismos de rochas, de arbustos e sol, o tom das canções era doce, sendo bravia a correnteza poderosa das águas? Talvez porque nessas rochas, pequenas flores, muito tenras, brincam com o ar, e porque a correnteza estrondosa do grande rio segue entre flores e trepadeiras onde os pássaros são alegres e felizes, mais do que em qualquer outra parte do mundo” (1)

Seguimos para Ollantaytambo, sítio onde todos se pasmaram da grandeza articulada e minuciosa dos incas. Luís Miguel, um pouco despeitado diante da admiração unânime que expressávamos, comentou comigo que a alta sucessão de terraços de pedra não era tão íngreme quanto os degraus da pirâmide de Chichén Itza. Não ficamos muito tempo, ou a parada não me pareceu suficientemente longa. Tínhamos que deixar Chrystian na estação de Pachar, onde ele pegaria o trem para Machu Picchu. Depois paramos em Chinchero para visitar uma cooperativa de artesãs têxteis. Mais uma vez, todos desceram para ouvir a demonstração do trabalho das tecelãs. Eu fui comprar uma Inka Kola na esquina. Minha aparência e meu castelhano de estrangeiro apavoraram as pequenas índias vendeiras, que não sabiam como devolver o troco dos vinte soles que lhes entregara. Pedi perdão pela falta de suelto. Uma delas atravessou a rua, chamou um índio forçudo, de jeans e botinas, que sacou do bolso um maço de dinheiro e deu-lhe o troco exato.  Sentei-me na calçada ao lado do Silvério, nosso motorista, que me perguntou sobre o fiasco da seleção brasileira na Copa de 2014. Luís Miguel saiu da apresentação das tecelãs e se juntou à animada divergência sobre os méritos relativos de Pelé, Ronaldinho, Neymar, Teófilo Cubillas e Hugo Sánchez. Da maneira mais ecumênica, chegamos à conclusão que qualquer coisa é melhor do que a arrogância de Don Dieguito Maradona. 


O dia de Machu Picchu

Gostaria de contar a epifania que tive ao contemplar as ruínas do sítio arqueológico mais famoso do meu continente, mas a verdade é que não tive epifania nenhuma. Quase tudo ali me pareceu uma mistificação: a suposta descoberta tardia feita por Hiram Bingham, a reconstrução da maior parte do lugar com seu estudado efeito cênico, as lhamas que pastam soltas pelo sítio, o engarrafamento na entrada do parque, em cujas tiendas se compram os gorros andinos que dão alguma cor local às levas de europeus e norte-americanos. Apesar disso, apreciei a viagem de trem pelo vale estreito, de onde se podia vislumbrar nas curvas do Urubamba o nevado Verônica emergindo sobre as árvores da mata quente e úmida. Das duas horas que passamos entre as pedras tão arrumadinhas de Machu Picchu, guardei o recuerdo humorístico da refrega entre um jovem esquerdista argentino e um tio espanhol a propósito da culpa dos conquistadores no genocídio indígena. O argentino disparou que o espanhol era um franquista. Para aliviar o constrangimento geral, começamos todos a rir, nós peruanos, colombianos, argentinos e brasileiros. Quinze minutos depois, os litigantes fizeram as pazes e reconheceram, envergonhados, que tanto a Espanha quanto a Argentina deram guarida a muitíssimos nazistas depois da guerra. Antes de partir, chamei à parte Marco Antonio (esse era o nome do espanhol) e, com o meu melhor ceceio castizo, disse-lhe o quanto eu apreciava a Espanha. Animado com minha imitação de sotaque e a inesperada solidariedade vinda da América Portuguesa, ele se pôs a falar do seu restaurante perto de Valladolid e insistiu vivamente que fôssemos provar o afamado lechazo que ele prepara. A certa distância, o jovem argentino, que conversava com o guia, observava-nos, certamente intrigado com a aliança entre o mestiço paulista e o visigodo de Castela. O argentino fez menção de se aproximar, mas já era hora de voltar ao ônibus, descer até Aguas Calientes, almoçar e começar as quatro horas de viagem de regresso a Cusco. Viesse o argentino ter conosco, nós o forçaríamos a admitir que, em que pesem suas qualidades futebolísticas, Don Dieguito era um boludo, pelotudo de mierda.

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(1) José Maria Arguedas, Os rios profundos, pp. 12 e 233








O vale do Urubamba


Pisac












O Urubamba - yawar mayu


Ollantaytambo











O anoitecer no vale do Urubamba


O nevado Verônica



O Urubamba junto à ferrovia para Machu Picchu



O Huayna Picchu e as ruínas de Machu Picchu





































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