Sevilha
A day in the life
O dia 14 de junho de 1982 foi uma
segunda-feira nublada em São Paulo. Três mil quilômetros ao sul
da minha casa, as forças argentinas se rendiam à Grã-Bretanha em Port Stanley,
encerrando a Guerra das Malvinas, mas isso eu só saberia no dia seguinte. No
Brasil, tudo o que interessava era a estreia da seleção de Telê
Santana no Mundial da Espanha às quatro da tarde. Como as aulas foram suspensas, aproveitei para ir à biblioteca pública de Santo André, decidido a enfrentar o
Livro VII da República, de Platão. Era minha resposta ao primeiro
chamado da sereia metafísica, mas a aventura foi interrompida quando a
bibliotecária avisou que era hora de fechar. Na praça em frente, todos corriam para ver a partida. Tomei o ônibus de volta para casa e cheguei a
tempo de assistir à disputa com a seleção da União Soviética, cujo trunfo era o famoso Dassayev, um goleiro alto e elástico que, a cada defesa, voava de Novgorod a
Kazan. No primeiro tempo, tomamos um gol, mas reagimos. Vencemos por 2 a
1.
Trinta anos esta
noite
Mais de trinta anos se passaram desde
aquela tarde sem luz em que me encantei com um mito de Platão e
um gol de Sócrates. A União Soviética desapareceu há muito tempo. A Seleção
Brasileira se tornou motivo de derrisão na Copa de 2014. Ludmila e eu
estávamos a oito mil quilômetros de casa e a meros cento e cinquenta
quilômetros do Estreito de Gilbraltar. Todas as noites, íamos comprar jamón,
frutas e uma garrafa de Ribera del Duero num supermercado da avenida Eduardo
Dato. De volta com as sacolas cheias, eu freava o passo junto à “Bombonera de
Nervión”, o Estádio Ramón Sanchez-Pizjuán, cenário daquela partida que, por
razões muito pouco esportivas, havia assinalado um dia importante num ano
decisivo da minha adolescência. Agora éramos nós que pisávamos o chão de
Sevilha, a cidade onde Antonio Machado nasceu e sobre a qual escreveu:
“Mi infancia son
recuerdos de un pátio de Sevilla
y un huerto claro
donde madura un limonero...”
Não deveis vos
enganar
O pátio com limoeiro ficava no Palácio
de las Dueñas que, nos tempos da Espanha pobre, chegou a ser um cortiço
ruidoso. Nos balcões da antiga casa senhorial não havia alfombras, mas roupas
pobres que desbotavam ao sol; não havia misteriosas princesas andaluzas, mas
gatas borralheiras a cuidar dos irmãozinhos. As operárias que enrolavam
charutos na Real Fábrica de Tabacos não eram Carmens. Os coitados que a
Inquisição havia encafuado no Castelo de São Jorge não eram Fidelios. Os
factótuns não eram próvidos como Figaro. Os cafajestes que flertavam com as
damas de mantilhas negras na procissão da Semana Santa não eram exatamente libertinos incréus – Tan largo me lo
fiáis – como o burlador D. Juán Tenorio.
As numerosas operas que se passam em
Sevilha - dizem que são mais de cento e cinquenta, dentre
as quais As Bodas de Fígaro, Don Giovanni, O Barbeiro de Sevilha,
Fidelio, Carmen, A Força do Destino - foram compostas por gente ilustre
que nunca andou pelo sombreado das ruas estreitas, que não tomou o sol da manhã
na Alameda de Hércules nem respirou o sossego das glorietas. Por isso,
valeram-se do exotismo fácil dos calabouços, dos sedutores encapuzados e das ciganas
oblíquas e dissimuladas. Sevilha não é nada disso. E por mais bela que seja a
Giralda iluminada pela lua cheia, ela é apenas o campanário da catedral: nenhum
fantasma de muezim convoca os falecidos fieis lá do alto. É preciso despojar
Sevilha desses atavios com que a imaginação pré-romântica e romântica falseou
cada rua. É preciso andar por essas ruas sem ouvir castanholas imaginárias, sem
fabular leyendas negras, sem entoar árias bufas nem temer punhaladas trágicas.
Sevilha é a Calle Sierpes, com suas
livrarias, docerias e lojas de chapéus. É a faísca que reverbera no ouro velho
dos altares da Igreja do Salvador. São os peixes dourados no Parque Maria Luísa. É a Fnac da Avenida de la Constituición. São
as lojas fechadas por causa da siesta ou por causa da crise. São os pátios
frescos e as laranjas. As equipes de remo que treinam no
Guadálquivir. Os tartéssios e turdetanos do Museu Arqueológico. O pôr-do-sol na Ponte de San Telmo no sentido de quem sai da
Puerta de Jeréz e segue para Triana. Os cacarecos da Expo 92 na ilha da Cartuxa
e a feiúra do Metropol Parasol: o alto preço a ser pago por toda província
ansiosa por afetar modernidade.
Uma antologia
Sevilha está nos poetas que lá nasceram
ou viveram: Don Antonio Machado, Don Luís Cernuda e Don Juán Cabral de Melo
Nieto. O nosso cônsul em Sevilha, a pretexto de exercer tarefas diplomáticas,
viveu ali por muitos anos. À noite, ele costumava resolver crimes na Calle
Relator; ao meio-dia, ele aguardava o cão sem plumas do Guadálquivir
transformar-se, sob a chapa ígnea do sol, noutro cão sem plumas, um que escorre como um
óleo e se chama Capibaribe. É do nosso Don Juán Cabral essa sevilhana portátil que ora vos ofereço.
Sevilha de bolso
Carregamos Sevilha os dois
Quem foi e quem lá nunca foi.
(Sevilha Andando)
A Sevilhana que não se sabia
São em Sevilha as glorietas.
Essas praças de bolso, feitas
Para se ir escutar o tempo
Desfiar carretéis de silêncio
(Sevilha Andando)
Sal interior
Não viria ela também
De certo fundo, de um núcleo
Que no fundo finge a luz
E traz no dia o escuro?
(Sevilha Andando)
Cidade Cítrica
Sevilha é um grande fruto cítrico,
Quanto mais ácido, mais vivo.
Em geral, as ruas e pátios
Arborizam limões amargos.
Mas vem da cal de cores ácidas,
Dos palácios como das taipas,
O sentir-se como na entranha
De luminosa, acesa laranja.
(Andando Sevilha)
O Arenal de Sevilha
Já nada resta do Arenal
De que contou Lope de Veja
A Torre do Ouro é sem ouro
Senão na cúpula amarela,
Já não mais as frotas das Índias
E esta hoje se diz América;
Nem a multidão de mercado
Que se armava chegando elas.
(Andando Sevilha)
Calle Sierpes
Sevilha tem bairros e ruas
Onde andar-se solto, à ventura
Mas há uma rota obrigatória
Como as do comércio de outrora
E esta se chama Calle Sierpes
Apinhada de leste a oeste.
(Andando Sevilha)
O Museu de Belas Artes
Este é o museu menos museu.
No Convento de Las Mercedes,
Palácio de tijolos frescos
Nada há de Convento nele.
Há jardins internos e fontes
Surtindo águas vivas em fios
e a enorme luz que se abre invade
tristes Cristos, sombrios bispos
Mas as santas de Zurbarán,
Lado a lado, entre as janelas,
Ficam lindas, assim lado a lado
Como misses na passarela.
(Andando Sevilha)
O Sevilhano e o Trabalho
Voltando da pá ou da enxada
Diz: “Vengo de echarme una siesta”.
(Andando Sevilha)
A Catedral
Lá se admira a terceira tumba
de Colombo, como outras, falsa
Os infundios do Sevilhano
Os infundios não são mentiras,
Nem tampouco a verdade estrita.
O sevilhano que o comete
Não tem má fé nem interesse.
É o uso da imaginação
Que borda sobre um fato chão
O que lhe parece mais real
Pois a verdade há-de ter sal
E ele a traduz no que gostaria
Que fosse, porque ali há mais chispa.
(Andando Sevilha)
Autocrítica
Só duas coisas conseguiram
(des)feri-lo até a poesia:
O Pernambuco de onde veio
E aonde foi, a Andaluzia.
Um, o vacinou do falar rico
E deu-lhe a outra, fêmea e viva,
Desafio demente: em verso
Dar a ver Sertão e Sevilha
(Escola de Facas)
As ruas |
As ruas |
As ruas |
A Catedral : Puerta del Perdón |
A Catedral: Patio de los Naranjos e Puerta del Perdón |
A Catedral: a Giralda |
A Catedral e a Giralda |
A Catedral vista da entrada do Real Alcázar. À esquerda, Arquivo Geral das Índias |
Torre do Ouro |
Torre do Ouro |
Equipes de remo no Guadalquivir |
Ponte de Alamillo |
Real Alcázar |
Real Alcázar |
Plaza de España |
Plaza de España |
Plaza de España |
Plaza de España |
Museu Arqueológico |
Altar da Igreja do Salvador |
Centro Andaluz de Arte Contemporáneo |
Centro Andaluz de Arte Contemporâneo |
Monumento del Campeador |
Suposto túmulo de Cristovão Colombo na Catedral de Sevilha |
Nenhum comentário:
Postar um comentário