Toledo
Das viagens em geral e desta em particular
Com exceção do costumeiro mau tempo na costa cantábrica, a
meteorologia prometia uma terça-feira ensolarada de Badajoz a Valência, de
Burgos a Cádiz. Na banca de jornal da estação, El País estampava os planos de
Alexis Tsipras caso o Syriza vencesse as eleições parlamentares do domingo, 25 de janeiro de 2015. O periódico ABC, certamente menos entusiasmado
com a possível vitória da esquerda na Grécia, anunciava a suposta descoberta da tumba da mãe de Alexandre, o Grande.
A caminho da cidade, no ponto em que o Tejo começa o seu meandro
mais caprichoso, a escura ponte de Alcántara e o maciço Alcázar contra o céu
azul nos saudaram como o fazem os parentes defuntos que teimam em aparecer nos
sonhos. Mau sinal. Devaneios fáceis como esse vêm daquele centro secreto que
define o perímetro das viagens e desenha-lhes o percurso. Se dele emana a
capacidade de admirar o belo, o sublime e o heroico, é também dele que vem o
prazer de acreditar nos mitos, de enxergar fantasmas e de produzir o que os
espanhóis chamam de “infundio” que é, não a mentira maldosa, mas certo exagero
para fazer coincidir o fato com o ideal. Isso dá aos relatos de viagem um ar de
fábula em que o incidente comezinho, o exotismo e a elástica margem de
idealização se combinam livremente, sem as inibições que a profilaxia racional
impõe ao discurso. Tal como o consumo de álcool, a condição
provisoriamente desenraizada do viajante suspende o senso crítico e liberta a
fantasia, motivo pelo qual os mais interessantes relatos de viagem sempre pareceram
ora um tanto implausíveis, ora descaradamente mentirosos para os que nunca viveram essa embriaguez e nem sequer concebem – pobrezinhos– o que seja padecer da Síndrome de Stendhal.
Ludmila e eu, que demoramos tanto para visitar os sítios sonhados
desde a infância, somos especialmente sujeitos a esses transportes extáticos e
vamos de mãos dadas, como um par de Santas Teresas d’Ávila com o coração
flechado por cada anjo do Senhor que apareça no feitio de uma fachada
plateresca, como a do Hospital da Santa Cruz, ou de uma pintura de El Greco,
como o Espólio de Cristo na sacristia da catedral, ou dos entalhes góticos do mosteiro de San Juan de los Reyes. Para colocar algum freio no
festim estético, adotei o princípio de que uma viagem só deve ser feita se for também para recordar o sofrimento, as angústias e os crimes cometidos em
outras épocas. Por isso, vim a Toledo ver com
meus próprios olhos o Alcázar, atualmente Museu do Exército, no qual se deu um
dos episódios mais discutidos do início da Guerra Civil.
O Alcázar de Toledo
Em 1072, Afonso VI se tornou rei de Leão e Castela. Conta-se que,
ao ser coroado na igreja de Santa Gadea em Burgos, ele teria sido obrigado pelo
Cid Campeador a jurar que não havia assassinado o próprio irmão, o rei Sancho. O episódio de
grande intensidade dramática é apócrifo, como deve ser também o juramento de
Harald diante de Guilherme da Normandia naquela outra canção de gesta do século
XI que é a Tapeçaria de Bayeux.
Assassino ou não, o rei Afonso se tornou símbolo da Reconquista
quando, no ano da graça de 1085, depois de um longo e negligente cerco a
Toledo, tomou a cidade menos por feito d’armas do que por acordo com
os ricos varões mouros, que um rei não é menos rei por aceitar honradas
vantagens em acréscimo de sua fazenda e nomeada. Como parte da transação, o rei
ficaria com o Alcázar, a velha fortaleza dos emires da Taifa de Toledo. Do século XII
ao XVI, muitos reis de Castela se empenharam em ampliar e embelezar o edifício, usado então como palácio real, porém, com a transferência do trono para Madrid no tempo de Felipe
II, o Alcázar foi rebaixado a depósito de rainhas viúvas. Perdido o antigo prestígio, sofreu incêndios, reconstruções e alterações até que a incerta rainha Isabel II o ofereceu para a Academia de Infantaria.
Foi nessa condição de colégio militar que o Alcázar ganhou celebridade em 1936, quando o coronel José Moscardó Ituarte, diretor da academia, se
pôs à frente da Guarda Civil de Toledo e declarou-se insubordinado ao governo
esquerdista da Segunda República, tão logo chegaram as notícias do levante da guarnição espanhola no Marrocos. As forças leais ao governo cercaram o palácio
fortificado desde 21 de julho até 27 de setembro, submetendo-o a intenso bombardeio que o destruiu quase totalmente. No entanto, os militares de Moscardó
resistiram entre as ruínas até serem salvos pelas tropas sublevadas comandadas pelo General Varela.
A história do cerco do Alcázar teve ampla repercussão entre os
simpatizantes da direita católica integrista e entre os fascistas a ponto de merecer um filme dirigido pelo italiano Augusto Genina, premiado com a Taça Mussolini
no Festival de Veneza de 1940. Quaisquer que sejam as suas imprecisões
históricas, o filme de Genina (disponível no Youtube) não é mau. A francesa
Mireille Balin interpreta uma espanhola sedutora, convenientemente chamada
Carmen, que come com os olhos mais tentadores que eu já vi o canastrão italiano
Fosco Giachetti, que interpreta um empertigadíssimo capitão espanhol cujo maior
lance de heroísmo é arriscar o pescoço para retirar uma bandeira comunista
que os milicianos hastearam no alto do Alcázar em pleno tiroteio. O filme tem
ainda o mérito de mostrar o coronel Moscadó como um militar tão contido e
consciencioso quanto um chefe de almoxarifado perto da aposentadoria no serviço
público, mesmo quando fala ao telefone com o filho Luís que lhe diz que iria
ser fuzilado pelos milicianos. Enfim, um esbirro exemplar, desses que são
imprescindíveis para as ditaduras de qualquer latitude e coloração política. Na
vida real, Franco o agraciou com o título de Conde do Alcázar, depois que o
coronel fez alguns trabalhos sujos na Catalunha.
Não sou espanhol nem historiador. Não sei o que se passou durante
o cerco do Alcázar, mas sei que o Generalíssimo Franco governou a Espanha de 1939
a 1975 e também sei que exercer o poder durante tanto tempo é
possível apenas por meio da mentira e da violência. Isso vale para Adolf Hitler, Benito Mussolini, Josef Stálin, Nicolai Ceausescu, Mao Tsé Tung, Fidel Castro, Muammar al-Gaddafi, Augusto Pinochet ou
Francisco Franco. Pouco importa se alguns deles, ao morrer, tenham sido beatificados pelos seus governados devido a essa forma especial de Síndrome de Estocolmo que consiste em apegar-se um povo ao ditador que lhe dava chibatadas no lombo.
Parti de Toledo sem visitar o interior do Alcázar. O fedor da
ditadura podia ser sentido da rua. Na verdade, nem gostei tanto assim de
Toledo. É verdade que a Catedral é magnífica, mas toda a cidade vive aviltada
pelo comércio de quinquilharias para os turistas que não param de chegar.
É verdade que há o famoso painel do Enterro do Conde de Orgaz, que El Greco
pintou na Igreja de São Tomé, mas há também as ossadas anônimas dos que foram
assassinados pelo bando nacional nos dias que se seguiram à “libertação” do
Alcázar. Para os que jazem no lote 42 do cemitério de Nuestra Señora del
Sagrario, o pincel adequado não seria o de Domenikos Theotokopoulos, mas o de Don
Francisco José de Goya y Lucientes.
Ao entrar na estação da Renfe, sacudi dos meus sapato a poeira de Toledo.
Ao entrar na estação da Renfe, sacudi dos meus sapato a poeira de Toledo.
Adendo
Duas visões sobre o cerco do Alcázar
Para o leitor curioso, transcrevo a opinião do escritor
conservador brasileiro Gustavo Corção a propósito do episódio do Alcázar. Em seguida, alguns excertos da obra do historiador britânico
Paul Preston, que se dedica há décadas ao estudo da Guerra Civil Espanhola numa
perspectiva crítica.
1. Gustavo Corção
"Não cabe aqui a centésima parte da epopeia do Alcázar de
Toledo. Cabe ainda um reparo. Estas coisas aconteceram neste século de tantas
degradações. Eu vivia, respirava, comia, dormia e trabalhava nos meus esquemas
eletrônicos, enquanto a Espanha, Toledo, o Alcázar, Moscardó defendiam o
cristianismo, a civilização, a honra, e tudo o mais que dá à vida o valor de
ser vivida. Por um conjunto de bloqueios e conjurações, em que este século é
fértil, passou-me despercebido o feito no momento mesmo em que eu poderia ter
respirado em sincronismo com os heróis do Alcázar. Estupidamente perdi essa
oportunidade de ser contemporâneo de uma raça de gigantes. Convertido à Fé
Católica, ainda mais estupidamente perdi a oportunidade de agradecer a Deus
tanta grandeza humana. Por um triz tive a sorte de sobreviver, e de ainda poder
admirar, e de ainda poder agradecer".
(Gustavo Corção, O Alcázar de Toledo)
2. Paul Preston
"Other spontaneous left-wing
militiamen from the capital headed South to reverse the success of the rising
in Toledo. With loyal troops, they captured the town but the rebels retreated
into the Alcázar, the impregnable fortress which dominates both Toledo and the
river Tagus which curls around it. Command was taken by the
fifty-eight-year-old Colonel José Moscardó, the Director of the Escuela de
Gimnástica of the Infantry Academy. (…)
The one thousand Civil Guards and
Falangists who had retreated into the Alcázar in the early days of the rising
had taken with them as hostages approximately two hundred women and children,
the families of known leftists. The militia had wasted vas amount of time,
energy and ammunition in trying to capture this strategically unimportant
fortress. The resistance of the besieged garrison had thus become the great symbol
of Nationalist heroism. Naturally, the existence, and later disappearance, of
the hostages was entirely forgotten. A story about the siege propagated by both
Spanish and English supporters of the Nationalist cause remained current
through out the Civil War and for many years after. It was claimed tha, on 23
July, the Republican militia commander in charge of the siege had telephoned
Colonel Moscardó, the garrison’s senior office, and told him that if he did not
surrender, his son would be executed.
Moscardó reputedly told his son to commend
his soul to God and die bravely. Allegedly, he the heard over the telephone the
shot which ended his son’s life. The story is almost certainly apocryphal for a
variety of reasons, not least because of its suspicious resemblance to the
legend of Guzmán el Bueno who bravely sacrificed the life of his son during the
thirteenth-century siege of Tarifa by the Moors. It fitted all too conveniently
into the Nationalist effort to link the Civil War against others Spaniards with
the Reconquista of Spain from the infidel. Moscardó’s son was in fact shot on
23 August but not because of the threat supposedly made against his father. He
was executed, along with other prisoners, as a reprisal for a Nationalist air
raid on Toledo. It’s odd that, if the telephone link with the Alcázar was
functioning on 23 July, further contact was never attempted. Such details
hardly mattered. The Alcázar and heroic anedoctes linked to it were of immense
propaganda value to the Nationalists.
On 9 September, an officer was sent to
Toledo with a sheet containing three conditions for the garrison’s surrender:
that Moscardó guarantee the lives of all those in the fortress; that all women,
children and youths under the age of sixteen be released immediately; and that
all others would be given a fair trial to ascertain their responsabilities. A
major of the Republican General Staff, Vicente Rojo, volunteered in the hope of
saving the hostages (…) He entered the fortress under a white flag of truce,
was blindfolded and taken to see Colonel Moscardó who glanced at the list of
conditions and, without hesitation, rejected them. (…) Moscardó asked him to
get a priest to come to hear confessions and say mass. (…)
On entering the fortress, Father Enrique
Vásquez Camarasa was blindfolded and taken, in total silence before the gaunt
figure of Moscardó. When Father Vásquez Camarasa enquired delicately about the
situation of the many women and children, Moscardó replied brusquely that it
was none of his business and that he could hear confessions, say mass and give
communion but nothing more. He was the taken to a pestilent cellar where he
said mass before a large number of emaciated women and crying children. Deeply
shocked by this hellish agglomeration of living corpses, he tried to talk to
the officers of the need to have pity on them. Moscardó never forgave him.
After the fortress was finally relieved, following another seventeen days of
privation, a press campaign was unleashed in the Nationalist zone against Vásquez
Camarasa, who was denounced as ‘the red priest’. At the end of the Civil War,
he was obliged to go into exile, dying in Buenos Aires in 1946. (…)
General Alfredo Kindelán organized a
meeting of the ranking Nationalist generals on 21 September at an airfield near
Salamanca. All the leading generals, except Cabanellas, agreed that a commander
in chief should be nominated to replace Sanjurjo, There was not only sound
military reasons for this but it would also facilitate ongoing negotiations for
aid from Hitler and Mussolini. At Salamanca meeting, Franco was chosen as
single commander. Later on the same day he decided to divert his advance
against Madrid in order to relieve the Alcázar. (…) By the 26 September,
Nationalist forces were outside Toledo. (…)
On the following day, the African columns
entered the city and were able to liberate their besieged comrades. A bloodbath
ensued. While it took place, the press was prevented from entering the city.
What they saw, when they were allowed in on 29 September shocked them deeply.
John Whitaker reported,’The men who commanded them never denied that the Moors
killed the wounded in the Republican hospital housed in the hospice of Saint
Juan Bautista on the outskirsts of Toledo. They boasted of how grenades were thrown
in among two hundred screaming and helpless men’. Whitaker was referring to the
Tavera Hospital, housed in the hospice of Saint Juan Bautista. Webb Miller of
the United Press also reported in what happened there, claiming thar one
hundred men were shot where they lay. At the maternity hospital, more than
twenty pregnant women were forced from their beds, loaded onto a truck and
taken to the municipal cemetery where they were shot. The hostages had already
been shot. Webb Miller reported seeing the beheaded corpses of militiamen in
the streets. Father Risco describes men and women commiting suicide to avoid
the capture by the African columns. Those who were taken in the house-to-house
searches, he commented, ‘had to die’. They were rounded up and taken to the
various towns squares where they were shot in groups of twenty or thirty. The
nearly eight hundred people shot were buried in a mass common grave in the
infamous lot 42 of the municipal cemetery.
Whatever the military efficacy of his
action, the political benefits to Franco were enormous. In the middle ages,
Toledo had been the first major Muslim city to be reconquered by Christian
forces. Now, Franco was symbolically associating himself with the great
warriors of the Reconquista and the Republican defenders with the infidel. The
liberation was restaged on the following day for the newsreel cameras. (…) Both
inside and outside Spain, he was emerging as the leader on whom rightist hopes
were focused. With a little chicanery by General Kindelán and Franco’s brother,
Nicolás, the diminutive Galician general was able to press his advantage to
become not only single commander but also Chief of the State. He was soon
hailed as Caudillo (the nearest Spanish equivalent to Führer) by ecstatic
Nationalist crowds".
(Paul Preston, The Spanish Civil War:
reaction, revolution & revenge, Harper Perennial, London, 2006, pp.112-113;
126; 128-133)
A ponte de Alcántara/ foto: Ludmila Ciuffi |
Porta de Alcántara |
Hospital de Santa Cruz |
Calle Cardenal Cisneros/ foto: Ludmila Ciuffi |
A Catedral: Porta dos Leões na calle Cardenal Cisneros |
O coro da Catedral de Santa Maria de Toledo |
O retábulo do altar-mor da Catedral/ foto: Ludmila Ciuffi |
Capela Fúnebre do condestável Álvaro de Luna |
Deambulatório da Catedral |
Transepto da Catedral |
A sacristia da Catedral: na parede do fundo, O Espólio de Cristo, de El Greco |
El Greco, O Espólio de Cristo, 1577-1579/ foto: Ludmila Ciuffi |
Claustro: entrada da Capela de San Blas |
A catedral vista da Plaza del Ayuntamiento |
Plaza del Ayuntamiento: começo da Calle Ciudad |
Igreja de San Román: Museu dos Concílios Visigodos |
Mosteiro de San Juan de los Reyes |
Mosteiro de San Juan de los Reyes |
Mosteiro de San Juan de los Reyes |
Mosteiro de San Juan de los Reyes |
Sinagoga de Santa Maria la Blanca |
Mosteiro de San Juan de los Reyes/ foto: Ludmila Ciuffi |
Museu de El Greco/ foto: Ludmila Ciuffi |
Museu de El Greco/ foto: Ludmila Ciuffi |
Museu de El Greco/ foto: Ludmila Ciuffi |
Museu de El Greco/ foto: Ludmila Ciuffi |
O rio Tejo visto da ponte de Alcántara/ foto: Ludmila Ciuffi |
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