quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

En medio de la plaza y sobre tosca piedra #4









Toledo



  
Das viagens em geral e desta em particular

Com exceção do costumeiro mau tempo na costa cantábrica, a meteorologia prometia uma terça-feira ensolarada de Badajoz a Valência, de Burgos a Cádiz. Na banca de jornal da estação, El País estampava os planos de Alexis Tsipras caso o Syriza vencesse as eleições parlamentares do domingo, 25 de janeiro de 2015. O periódico ABC, certamente menos entusiasmado com a possível vitória da esquerda na Grécia, anunciava a suposta descoberta da tumba da mãe de Alexandre, o Grande.

A caminho da cidade, no ponto em que o Tejo começa o seu meandro mais caprichoso, a escura ponte de Alcántara e o maciço Alcázar contra o céu azul nos saudaram como o fazem os parentes defuntos que teimam em aparecer nos sonhos. Mau sinal. Devaneios fáceis como esse vêm daquele centro secreto que define o perímetro das viagens e desenha-lhes o percurso. Se dele emana a capacidade de admirar o belo, o sublime e o heroico, é também dele que vem o prazer de acreditar nos mitos, de enxergar fantasmas e de produzir o que os espanhóis chamam de “infundio” que é, não a mentira maldosa, mas certo exagero para fazer coincidir o fato com o ideal. Isso dá aos relatos de viagem um ar de fábula em que o incidente comezinho, o exotismo e a elástica margem de idealização se combinam livremente, sem as inibições que a profilaxia racional impõe ao discurso.  Tal como o consumo de álcool, a condição provisoriamente desenraizada do viajante suspende o senso crítico e liberta a fantasia, motivo pelo qual os mais interessantes relatos de viagem sempre pareceram ora um tanto implausíveis, ora descaradamente mentirosos para os que nunca viveram essa embriaguez e nem sequer concebem – pobrezinhos– o que seja padecer da Síndrome de Stendhal.

Ludmila e eu, que demoramos tanto para visitar os sítios sonhados desde a infância, somos especialmente sujeitos a esses transportes extáticos e vamos de mãos dadas, como um par de Santas Teresas d’Ávila com o coração flechado por cada anjo do Senhor que apareça no feitio de uma fachada plateresca, como a do Hospital da Santa Cruz, ou de uma pintura de El Greco, como o Espólio de Cristo na sacristia da catedral, ou dos entalhes góticos do mosteiro de San Juan de los Reyes. Para colocar algum freio no festim estético, adotei o princípio de que uma viagem só deve ser feita se for também para recordar o sofrimento, as angústias e os crimes cometidos em outras épocas. Por isso, vim a Toledo ver com meus próprios olhos o Alcázar, atualmente Museu do Exército, no qual se deu um dos episódios mais discutidos do início da Guerra Civil.



O Alcázar de Toledo

Em 1072, Afonso VI se tornou rei de Leão e Castela. Conta-se que, ao ser coroado na igreja de Santa Gadea em Burgos, ele teria sido obrigado pelo Cid Campeador a jurar que não havia assassinado o próprio irmão, o rei Sancho. O episódio de grande intensidade dramática é apócrifo, como deve ser também o juramento de Harald diante de Guilherme da Normandia naquela outra canção de gesta do século XI que é a Tapeçaria de Bayeux.

Assassino ou não, o rei Afonso se tornou símbolo da Reconquista quando, no ano da graça de 1085, depois de um longo e negligente cerco a Toledo, tomou a cidade menos por feito d’armas do que por acordo com os ricos varões mouros, que um rei não é menos rei por aceitar honradas vantagens em acréscimo de sua fazenda e nomeada. Como parte da transação, o rei ficaria com o Alcázar, a velha fortaleza dos emires da Taifa de Toledo. Do século XII ao XVI, muitos reis de Castela se empenharam em ampliar e embelezar o edifício, usado então como palácio real, porém, com a transferência do trono para Madrid no tempo de Felipe II, o Alcázar foi rebaixado a depósito de rainhas viúvas. Perdido o antigo prestígio, sofreu incêndios, reconstruções e alterações até que a incerta rainha Isabel II o ofereceu para a Academia de Infantaria.

Foi nessa condição de colégio militar que o Alcázar ganhou celebridade em 1936, quando o coronel José Moscardó Ituarte, diretor da academia, se pôs à frente da Guarda Civil de Toledo e declarou-se insubordinado ao governo esquerdista da Segunda República, tão logo chegaram as notícias do levante da guarnição espanhola no Marrocos. As forças leais ao governo cercaram o palácio fortificado desde 21 de julho até  27 de setembro, submetendo-o a intenso bombardeio que o destruiu quase totalmente. No entanto, os militares de Moscardó resistiram entre as ruínas até serem salvos pelas tropas sublevadas comandadas pelo General Varela. 

A história do cerco do Alcázar teve ampla repercussão entre os simpatizantes da direita católica integrista e entre os fascistas a ponto de merecer um filme dirigido pelo italiano Augusto Genina, premiado com a Taça Mussolini no Festival de Veneza de 1940. Quaisquer que sejam as suas imprecisões históricas, o filme de Genina (disponível no Youtube) não é mau. A francesa Mireille Balin interpreta uma espanhola sedutora, convenientemente chamada Carmen, que come com os olhos mais tentadores que eu já vi o canastrão italiano Fosco Giachetti, que interpreta um empertigadíssimo capitão espanhol cujo maior lance de heroísmo é arriscar o pescoço para retirar uma bandeira comunista que os milicianos hastearam no alto do Alcázar em pleno tiroteio. O filme tem ainda o mérito de mostrar o coronel Moscadó como um militar tão contido e consciencioso quanto um chefe de almoxarifado perto da aposentadoria no serviço público, mesmo quando fala ao telefone com o filho Luís que lhe diz que iria ser fuzilado pelos milicianos. Enfim, um esbirro exemplar, desses que são imprescindíveis para as ditaduras de qualquer latitude e coloração política. Na vida real, Franco o agraciou com o título de Conde do Alcázar, depois que o coronel fez alguns trabalhos sujos na Catalunha.

Não sou espanhol nem historiador. Não sei o que se passou durante o cerco do Alcázar, mas sei que o Generalíssimo Franco governou a Espanha de 1939 a 1975 e também sei que exercer o poder durante tanto tempo é possível apenas por meio da mentira e da violência. Isso vale para Adolf Hitler, Benito Mussolini, Josef Stálin, Nicolai Ceausescu, Mao Tsé Tung, Fidel Castro, Muammar al-Gaddafi, Augusto Pinochet ou Francisco Franco. Pouco importa se alguns deles, ao morrer, tenham sido beatificados pelos seus governados devido a essa forma especial de Síndrome de Estocolmo que consiste em apegar-se um povo ao ditador que lhe dava chibatadas no lombo.

Parti de Toledo sem visitar o interior do Alcázar. O fedor da ditadura podia ser sentido da rua. Na verdade, nem gostei tanto assim de Toledo. É verdade que a Catedral é magnífica, mas toda a cidade vive aviltada pelo comércio de quinquilharias para os turistas que não param de chegar. É verdade que há o famoso painel do Enterro do Conde de Orgaz, que El Greco pintou na Igreja de São Tomé, mas há também as ossadas anônimas dos que foram assassinados pelo bando nacional nos dias que se seguiram à “libertação” do Alcázar. Para os que jazem no lote 42 do cemitério de Nuestra Señora del Sagrario, o pincel adequado não seria o de Domenikos Theotokopoulos, mas o de Don Francisco José de Goya y Lucientes. 

Ao entrar na estação da Renfe, sacudi dos meus sapato a poeira de Toledo.



Adendo

Duas visões sobre o cerco do Alcázar


Para o leitor curioso, transcrevo a opinião do escritor conservador brasileiro Gustavo Corção a propósito do episódio do Alcázar. Em seguida, alguns excertos da obra do historiador britânico Paul Preston, que se dedica há décadas ao estudo da Guerra Civil Espanhola numa perspectiva crítica. 



1. Gustavo Corção

"Não cabe aqui a centésima parte da epopeia do Alcázar de Toledo. Cabe ainda um reparo. Estas coisas aconteceram neste século de tantas degradações. Eu vivia, respirava, comia, dormia e trabalhava nos meus esquemas eletrônicos, enquanto a Espanha, Toledo, o Alcázar, Moscardó defendiam o cristianismo, a civilização, a honra, e tudo o mais que dá à vida o valor de ser vivida. Por um conjunto de bloqueios e conjurações, em que este século é fértil, passou-me despercebido o feito no momento mesmo em que eu poderia ter respirado em sincronismo com os heróis do Alcázar. Estupidamente perdi essa oportunidade de ser contemporâneo de uma raça de gigantes. Convertido à Fé Católica, ainda mais estupidamente perdi a oportunidade de agradecer a Deus tanta grandeza humana. Por um triz tive a sorte de sobreviver, e de ainda poder admirar, e de ainda poder agradecer".
(Gustavo Corção, O Alcázar de Toledo)



2.       Paul Preston

"Other spontaneous left-wing militiamen from the capital headed South to reverse the success of the rising in Toledo. With loyal troops, they captured the town but the rebels retreated into the Alcázar, the impregnable fortress which dominates both Toledo and the river Tagus which curls around it. Command was taken by the fifty-eight-year-old Colonel José Moscardó, the Director of the Escuela de Gimnástica of the Infantry Academy. (…)

The one thousand Civil Guards and Falangists who had retreated into the Alcázar in the early days of the rising had taken with them as hostages approximately two hundred women and children, the families of known leftists. The militia had wasted vas amount of time, energy and ammunition in trying to capture this strategically unimportant fortress. The resistance of the besieged garrison had thus become the great symbol of Nationalist heroism. Naturally, the existence, and later disappearance, of the hostages was entirely forgotten. A story about the siege propagated by both Spanish and English supporters of the Nationalist cause remained current through out the Civil War and for many years after. It was claimed tha, on 23 July, the Republican militia commander in charge of the siege had telephoned Colonel Moscardó, the garrison’s senior office, and told him that if he did not surrender, his son would be executed.

Moscardó reputedly told his son to commend his soul to God and die bravely. Allegedly, he the heard over the telephone the shot which ended his son’s life. The story is almost certainly apocryphal for a variety of reasons, not least because of its suspicious resemblance to the legend of Guzmán el Bueno who bravely sacrificed the life of his son during the thirteenth-century siege of Tarifa by the Moors. It fitted all too conveniently into the Nationalist effort to link the Civil War against others Spaniards with the Reconquista of Spain from the infidel. Moscardó’s son was in fact shot on 23 August but not because of the threat supposedly made against his father. He was executed, along with other prisoners, as a reprisal for a Nationalist air raid on Toledo. It’s odd that, if the telephone link with the Alcázar was functioning on 23 July, further contact was never attempted. Such details hardly mattered. The Alcázar and heroic anedoctes linked to it were of immense propaganda value to the Nationalists.

On 9 September, an officer was sent to Toledo with a sheet containing three conditions for the garrison’s surrender: that Moscardó guarantee the lives of all those in the fortress; that all women, children and youths under the age of sixteen be released immediately; and that all others would be given a fair trial to ascertain their responsabilities. A major of the Republican General Staff, Vicente Rojo, volunteered in the hope of saving the hostages (…) He entered the fortress under a white flag of truce, was blindfolded and taken to see Colonel Moscardó who glanced at the list of conditions and, without hesitation, rejected them. (…) Moscardó asked him to get a priest to come to hear confessions and say mass. (…)

On entering the fortress, Father Enrique Vásquez Camarasa was blindfolded and taken, in total silence before the gaunt figure of Moscardó. When Father Vásquez Camarasa enquired delicately about the situation of the many women and children, Moscardó replied brusquely that it was none of his business and that he could hear confessions, say mass and give communion but nothing more. He was the taken to a pestilent cellar where he said mass before a large number of emaciated women and crying children. Deeply shocked by this hellish agglomeration of living corpses, he tried to talk to the officers of the need to have pity on them. Moscardó never forgave him. After the fortress was finally relieved, following another seventeen days of privation, a press campaign was unleashed in the Nationalist zone against Vásquez Camarasa, who was denounced as ‘the red priest’. At the end of the Civil War, he was obliged to go into exile, dying in Buenos Aires in 1946. (…)

General Alfredo Kindelán organized a meeting of the ranking Nationalist generals on 21 September at an airfield near Salamanca. All the leading generals, except Cabanellas, agreed that a commander in chief should be nominated to replace Sanjurjo, There was not only sound military reasons for this but it would also facilitate ongoing negotiations for aid from Hitler and Mussolini. At Salamanca meeting, Franco was chosen as single commander. Later on the same day he decided to divert his advance against Madrid in order to relieve the Alcázar. (…) By the 26 September, Nationalist forces were outside Toledo. (…)

On the following day, the African columns entered the city and were able to liberate their besieged comrades. A bloodbath ensued. While it took place, the press was prevented from entering the city. What they saw, when they were allowed in on 29 September shocked them deeply. John Whitaker reported,’The men who commanded them never denied that the Moors killed the wounded in the Republican hospital housed in the hospice of Saint Juan Bautista on the outskirsts of Toledo. They boasted of how grenades were thrown in among two hundred screaming and helpless men’. Whitaker was referring to the Tavera Hospital, housed in the hospice of Saint Juan Bautista. Webb Miller of the United Press also reported in what happened there, claiming thar one hundred men were shot where they lay. At the maternity hospital, more than twenty pregnant women were forced from their beds, loaded onto a truck and taken to the municipal cemetery where they were shot. The hostages had already been shot. Webb Miller reported seeing the beheaded corpses of militiamen in the streets. Father Risco describes men and women commiting suicide to avoid the capture by the African columns. Those who were taken in the house-to-house searches, he commented, ‘had to die’. They were rounded up and taken to the various towns squares where they were shot in groups of twenty or thirty. The nearly eight hundred people shot were buried in a mass common grave in the infamous lot 42 of the municipal cemetery.

Whatever the military efficacy of his action, the political benefits to Franco were enormous. In the middle ages, Toledo had been the first major Muslim city to be reconquered by Christian forces. Now, Franco was symbolically associating himself with the great warriors of the Reconquista and the Republican defenders with the infidel. The liberation was restaged on the following day for the newsreel cameras. (…) Both inside and outside Spain, he was emerging as the leader on whom rightist hopes were focused. With a little chicanery by General Kindelán and Franco’s brother, Nicolás, the diminutive Galician general was able to press his advantage to become not only single commander but also Chief of the State. He was soon hailed as Caudillo (the nearest Spanish equivalent to Führer) by ecstatic Nationalist crowds".
(Paul Preston, The Spanish Civil War: reaction, revolution & revenge, Harper Perennial, London, 2006, pp.112-113; 126; 128-133)




A ponte de Alcântara e o Alcázar no alto da cidade



A ponte de Alcántara/ foto: Ludmila Ciuffi



Porta de Alcántara



Hospital de Santa Cruz



Calle Cardenal Cisneros/ foto: Ludmila Ciuffi


 
 A Catedral: Porta dos Leões na calle Cardenal Cisneros




O coro da Catedral de Santa Maria de Toledo



O retábulo do altar-mor da Catedral/ foto: Ludmila Ciuffi



Capela Fúnebre do condestável Álvaro de Luna 



Deambulatório da Catedral



Transepto da Catedral



A sacristia da Catedral: na parede do fundo, O Espólio de Cristo, de El Greco



El Greco, O Espólio de Cristo, 1577-1579/ foto: Ludmila Ciuffi



Claustro: entrada da Capela de San Blas



A catedral vista da Plaza del Ayuntamiento


Plaza del Ayuntamiento: começo da Calle Ciudad



Igreja de San Román: Museu dos Concílios Visigodos




Mosteiro de San Juan de los Reyes



Mosteiro de San Juan de los Reyes



Mosteiro de San Juan de los Reyes


Mosteiro de San Juan de los Reyes


Sinagoga de Santa Maria la Blanca



Mosteiro de San Juan de los Reyes/ foto: Ludmila Ciuffi


Museu de El Greco/ foto: Ludmila Ciuffi





Museu de El Greco/ foto: Ludmila Ciuffi



Museu de El Greco/ foto: Ludmila Ciuffi



Museu de El Greco/ foto: Ludmila Ciuffi




O rio Tejo visto da ponte de Alcántara/ foto: Ludmila Ciuffi






























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