terça-feira, 13 de dezembro de 2016

En medio de la plaza y sobre tosca piedra #2







Córdoba



Uma data num livro esquecido na estante

Em 1993, Ludmila e eu batalhávamos muito para mobiliar o nosso minúsculo apartamento de recém-casados. Eu dava aulas de literatura, fazia Mestrado na USP e engordava o orçamento corrigindo redações de alunos de um cursinho pré-vestibular. Eu passara a segunda-feira, 19 de abril, lecionando em Sorocaba, mas nos intervalos acompanhava com meus colegas os lances finais do cerco ao rancho Apocalipse em Waco, Texas, que resultou na morte de dezenas de seguidores de David Koresh.  Na terça-feira, 20 de abril, tínhamos aula da USP. Nos corredores, os alunos discutiam a tragédia do Texas. Muitos a comparavam ao suicídio coletivo dos adeptos de Jim Jones em 1978, outros ressaltavam a ação desastrosa do FBI. Em algumas rodas, havia aqueles que riam do ridículo plebiscito que seria realizado no dia seguinte, 21 de abril, para decidir se o Brasil voltaria ou não a ser uma monarquia e se aceitaríamos o parlamentarismo. Antes de pegarmos nosso ônibus, comprei num dos buquinistas que ficavam entre o prédio da Faculdade de Letras e o da Filosofia uma pequena antologia de Luís de Góngora, que ainda tenho comigo. Diante da brutalidade e do ridículo da história, nenhum de nós se lembrou que naquele 20 de abril de 1993, data que marquei na página inicial, um outro espanhol, o delicado e imaginoso Juán Miró completaria cem anos.




No Califado

O ano era 2015. Fazia duas semanas que a presidenta Dilma Rousseff iniciara seu segundo mandato, depois de uma eleição que deixara o país profundamente dividido. Em Paris, havia extensas filas para comprar a primeira edição do Charlie Hebdo depois da brutal chacina de 7 de janeiro. Na Espanha, as medidas de segurança tinham sido redobradas nas estações ferroviárias e nos aeroportos. Pela manhã, desembarcamos em Córdoba, vindos de Sevilha. Fazia sol e a temperatura se elevou bastante no começo da tarde, quando, do alto das ameias do Alcázar dos Reis Cristãos, observávamos o jardim em que Isabel e Fernando receberam Cristóvão Colombo e assistíamos ao adestramento de uma égua branca na Cavalariça Real lá embaixo.  Fomos almoçar num restaurante da Calle San Fernando, voltando da visita à igreja de São Lourenço e às ruínas do templo romano. Comemos cuscuz e bacalhau assado com pistache, acompanhado de um Tempranillo. Já perto da Mesquita-Catedral, encontramos várias ruas bloqueadas pela polícia. É que havia a suspeita de que um veículo estacionado indevidamente fosse um carro-bomba do Daesh, que havia prometido reconquistar o Califado de Córdoba. Evacuada pelas forças de segurança, a Mesquita-Catedral permaneceu fechada pelo resto da tarde. 



Lo que lloró la Aurora – si es néctar lo que llora

Não houve, afinal, nenhum atentado terrorista. Tratava-se apenas de um motorista atrapalhado que estacionou onde não devia. Felizmente o ridículo prevaleceu sobre o trágico e transformou-se no fait-divers dos telejornais das 20h em toda Andaluzia.

Foi muita sorte podermos visitar a Mesquita-Catedral pela manhã, antes do incidente. Logo que entramos, encontramos o túmulo de Don Luís de Góngora y Argote numa capela pequena e austera indignamente situada junto da passagem que leva aos toilettes. Tremenda ingratidão da cidade de Córdoba para com o filho que lhe rendeu, num soneto, preito tão comovido:

¡Oh excelso muro, oh torres coronadas
De honor, de majestad, de gallardía!
¡Oh gran río, gran rey de Andalucía,
De arenas nobles, ya que no doradas!

¡Oh fértil llano, oh sierras levantadas,
Que privilegia el cielo y dora el día!
¡Oh siempre glorïosa patria mía,
Tanto por plumas cuanto por espadas!

Si entre aquellas rüinas y despojos
Que enriquece Genil y Dauro baña
Tu memoria no fue alimento mío,

Nunca merezcan mis ausentes ojos
Ver tu muro, tus torres y tu río,
Tu llano y sierra, ¡oh patria, oh flor de España!


Córdoba foi a terra natal de Sêneca, de Averróis e de Maimônides, mas todos foram morrer bem longe: em Roma,  no Marrocos e  no Egito. Don Luís é o único que regressou, já doente e desvalido da proteção do Conde Duque de Olivares, na condição lamentável de pobre homem rico. A despeito de todas as minhas simpatias quevedianas, por alguns instantes parei junto à grade que protege os despojos da família do poeta e tentei formular uma pequena prece de ateu, porque não me vinham os versos belíssimos e tão pouco gongóricos que Don Luís dedicou à sepultura da Duquesa de Lerma, mas eu os encontrei naquela antologia esquecida na estante, marcada com o dia 20 de abril de 1993:

¡Ayer deidad humana, hoy poca tierra:
Aras ayer, hoy túmulo, oh mortales!
Plumas, aunque de águilas reales,
Plumas son; quien lo ignora, mucho yerra.

Los huesos que hoy este sepulcro encierra,
A no estar entre aromas orientales,
Mortales señas dieran de mortales;
La razón abra lo que el mármol cierra.


Calle Alta de Santa Ana


Igreja de São Lourenço



O Alcázar dos Reis Cristãos


Cavalariças Reais


Ponte Romana


O Guadalquivir

O Alcázar visto da Ponte Romana


Calle Torrijos: a Mesquita-Catedral


Calle Torrijos: a Mesquita-Catedral



O interior da Mesquita-Catedral































































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