sábado, 17 de dezembro de 2016

En medio de la plaza y sobre tosca piedra #3







Granada




A primeira despedida

Ao contrário da França, que me foi entregue num bloco maciço de língua, história, literatura, filosofia e arte, a Espanha sempre me veio em pedaços, ao acaso dos encontros. Às vezes, tenho que cavar fundo para descobrir quando ouvi um nome espanhol pela primeira vez. Por isso, esta viagem também tem sido para dentro, para o centro secreto em torno do qual se define o perímetro de todas as viagens.

Nas semanas que antecederam a partida, planejei cuidadosamente a visita à Alhambra, numa excitação que, desproporcional ao meu interesse pela arquitetura islâmica em El-Andalus, parecia sinal dessas vocações profundas e obscuras que alimentam mitos sobre vidas pregressas. A emoção da corrida de táxi, que rapidamente ganhou a encosta para nos deixar no portão do Generalife, não foi correspondida nem pelo passeio nem pelas construções, por primorosos que fossem o lavor e a imaginação decorativa dos artesãos a serviço da dinastia Nasrid. Somente quando, descemos à tarde a Cuesta de Gomérez até a Praça Nova é que uma reminiscência longínqua se esboçou para sumir logo depois, durante a caminhada rumo à estação de trem.

Ao juntar as notas, fotos e o curto filme que fiz de Granada para escrever este capítulo da viagem à Espanha, ocorreu-me outra vez aquela reminiscência ligada ao caminho da encosta da cidadela à cidade. Lembrei-me, então, de um livro ginasiano que o Neco, meu tio, havia deixado comigo em 1973. Um dos capítulos falava do último reino mouro da Espanha e trazia uma ilustração tosca de homens de barba e turbantes atacando com suas cimitarras os cavaleiros cristãos. Na fantasia dos meus seis anos, a imagem se fundiu à lenda do Cid Campeador e da bela Jimena,  que Charlton Heston e a minha adorada Sophia Loren tinham interpretado no cinema doze anos antes.

Nas férias de 1980, resolvi estudar história todas as manhãs. O último reino mouro da Península Ibérica passou a ter um nome, Granada, e um rei, Boabdil. Aos trezes anos, o que me impressionava era o momento da capitulação, no qual eu figurava Boabdil ora prostrado diante dos Reis Católicos, ora entregando as chaves da cidadela de maneira senhorial à maneira da Rendição de Breda, de Don Diego Velázquez. Deve ter sido nessa mesma época que fiquei sabendo das lágrimas de Boabdil ao partir de Granada, as quais lhe teriam valido dura reprimenda da mãe: “Choras como mulher o que não soubeste defender como homem”. Disso tirei a lição de que, se não for possível defender um bem até o fim, é melhor não chorar perto da progenitora.

Ao terminar meu curso de Filosofia em 1990, resolvi retomar meus estudos de história. Numa obra sobre a cultura islâmica, o rei Boabdil se tornou o emir Abû ʿAbd Al·lâh «az-Zughbî» Mohammed ben Abî al-Hasan ʿAlî, e a dinastia Nasrid, da qual ele foi o governante derradeiro, ganhou contornos de crônica florentina. A reprimenda da mãe certamente fora apenas uma calúnia inventada por algum cristão carente de divã e analista. Alhambra se mostrava, enfim, como o último fulgor de uma civilização extraordinária de artistas, generais, filósofos e poetas, que se espraiava de Cádiz a Madrid, o mundo de El-Andalus. No meu ócio de universitário ainda não engajado nas tarefas de uma profissão, eu recompunha e reescrevia de muitas maneiras o destino daqueles dois monarcas que viram o final de seus reinos na segunda metade do século XV.  Um, o imperador Constantino Paleólogo, que morreu em maio de 1453, durante a tomada de Constantinopla,  o outro, o emir Mohammed que, depois de longa negociação diplomática com Fernando de Aragão e Isabel de Castela, desceu a encosta para entregar as chaves da Alhambra e partir para sempre no dia 2 de janeiro de 1492.

O crepúsculo de uma época me comove mais que o começo de novos tempos. Os começos são confusos e indistintos, todas origens são mitos. Na nascente dos rios, encontramos sempre uma rede capilar de regatos que nos confundem, nunca a fonte única e ideal. A identidade do fluxo não vem de uma origem suposta e jamais encontrável, mas do próprio cursus. À medida que descem para a foz, as correntes cavam fundo o leito e carregam consigo o barro, a carne, a sujeira e as raízes que dão a cor própria e única de cada rio. A longa gênese se concluiu e o rio despeja no oceano tudo o que ele é e tudo o que ele foi. O nascituro é apenas sonho e promessa. Jamais entendemos o que está a nascer, somente podemos compreender o que termina. O que se fecha é justamente o que se abre diante de nós. É a lição da coruja de Minerva.


A segunda despedida

A Espanha sempre me chegou em pedaços, sem ordem nenhuma. Por muito tempo, Lorca foi apenas o autor do proverbial “Verde que te quiero verde” que compunha a bagagem de frases feitas dos middlebrows até que, numa noite de setembro de 1983, eu li numa conferência de Adorno sobre Lírica e Sociedade:

"O que afirmei foi que a configuração lírica é sempre, também, a expressão subjetiva de um antagonismo social. Mas como o mundo objetivo, que produz a lírica, é um mundo em si mesmo antagonístico, o conceito de lírica não se esgota na expressão da subjetividade, à qual a linguagem confere objetividade. Não apenas o sujeito lírico incorpora de modo decisivo o todo, quanto mais adequadamente se manifesta, mas antes a própria subjetividade poética deve sua existência ao privilégio: somente a pouquíssimos homens, devido às pressões da sobrevivência, foi dado apreender o universal no mergulho em si mesmo, ou foi permitido que se desenvolvessem como sujeitos autônomos, capazes de se expressar livremente. Os outros, contudo, aqueles que não apenas se encontram alienados, como se fossem objetos, diante do desconcertado sujeito poético, mas que também foram rebaixados literalmente à condição de objetos da história, têm tanto ou mais direito de tatear em busca da própria voz, na qual se enlaçam o sofrimento e o sonho. A afirmação desse direito inalienável tem sido uma constante, ainda que de maneira impura e mutilada, fragmentária e intermitente, a única possível para aqueles que têm o fardo para carregar. Uma corrente subterrânea coletiva é o fundamento de toda lírica individual. Se esta visa efetivamente o todo e não meramente uma parte do privilégio, refinamento e delicadeza daquele que pode se dar ao luxo de ser delicado, então a substancialidade da lírica individual deriva essencialmente de sua participação nessa corrente subterrânea coletiva, pois somente ela faz da linguagem o meio em que o sujeito se torna mais do que apenas sujeito. (...) Hoje, quando o pressuposto daquele conceito de lírica que tomo como ponto de partida, a expressão individual, parece abalado até o âmago na crise do indivíduo, a corrente subterrânea da lírica aflora com violência nos mais diversos pontos, primeiro como mero fermento da expressão individual, mas logo também como possível antecipação de uma situação que ultrapassa a mera individualidade. Se as traduções não enganam, Garcia Lorca, que os esbirros de Franco assassinaram e que nenhum regime totalitário teria podida suportar, é portador de tal força”.

Na visão de Adorno, a poesia de Lorca, como a de todos os grandes líricos, seria o resultado de uma subjetividade privilegiada que, ao mergulhar em si mesma, manifestaria a situação aviltada do homem numa sociedade dividida e traria, junto com a dor, a promessa de superação do aviltamento e da reconciliação final dos antagonismos. Que essa dor e essa promessa fossem intoleráveis para os autoritários é o que Lorca veio a descobrir da maneira mais brutal. Em agosto de 1936, Granada estava sob o controle dos militares sublevados contra a Segunda República. Acusado de ser homossexual e espião a serviço dos russos, Lorca foi preso e fuzilado de madrugada. O paradeiro do corpo, lançado numa vala comum nos arredores de Granada, continua desconhecido. Antonio Machado, que teria que fugir da Espanha três anos depois, assim narrou o assassinato de Garcia Lorca:

1.      El crimen
Se le vio, caminando entre fusiles,
por una calle larga,
salir al campo frío,
aún con estrellas de la madrugada.
Mataron a Federico
cuando la luz asomaba.
El pelotón de verdugos
no osó mirarle la cara.
Todos cerraron los ojos;
rezaron: ¡ni Dios te salva!
Muerto cayó Federico
—sangre en la frente y plomo en las entrañas—
… Que fue en Granada el crimen
sabed —¡pobre Granada!—, en su Granada.

2.   El poeta y la muerte

Se le vio caminar solo con Ella,
sin miedo a su guadaña.
—Ya el sol en torre y torre, los martillos
en yunque— yunque y yunque de las fraguas.
Hablaba Federico,
requebrando a la muerte. Ella escuchaba.
«Porque ayer en mi verso, compañera,
sonaba el golpe de tus secas palmas,
y diste el hielo a mi cantar, y el filo
a mi tragedia de tu hoz de plata,
te cantaré la carne que no tienes,
los ojos que te faltan,
tus cabellos que el viento sacudía,
los rojos labios donde te besaban…
Hoy como ayer, gitana, muerte mía,
qué bien contigo a solas,
por estos aires de Granada, ¡mi Granada!»

3.
Se le vio caminar…
Labrad, amigos,
de piedra y sueño en el Alhambra,
un túmulo al poeta,
sobre una fuente donde llore el agua,
y eternamente diga:
el crimen fue en Granada, ¡en su Granada!


No Poema del Cante Jondo, de 1921, o próprio Lorca havia escrito com presciência:

El grito deja en el viento
una sombra de ciprés.

(Dejadme en este campo,
llorando.)

Todo se ha roto en el mundo.
No queda más que el silencio.

(Dejadme en este campo,
llorando.)

El horizonte sin luz
está mordido de hogueras.

(Ya os he dicho que me dejéis
en este campo,
llorando.)

Quando voltávamos para a estação de trem, vimos que o nome de José Antonio Primo de Ribera, fundador da Falange, continua em letras grandes e vivas a ser lido na parede da Catedral. A cada 2 de janeiro, os fascistas, os franquistas saudosos, a extrema-direita hostil aos muçulmanos e aos homossexuais, enfim, os assassinos de Lorca se juntam para celebrar a capitulação do emir Mohammed. Quando chegamos à cidade dez dias depois da Fiesta de la Toma de Granada de 2015, o fartum de bestas felizmente já havia se dissipado com o ar frio que descia da Serra Nevada. Na pequena livraria que há na Alhambra, comprei as Poesias Completas de Don Federico, que comecei a ler na plataforma da estação, tendo à minha frente a antiga fortaleza moura.

Ha llegado la hora 
de ser sinceros,
la hora de los llantos 
sin consuelo,
la última hora antes
del gran silencio.
Quitarse los vestidos
la carne los huesos,
y arrojad de vosotros
el corazón enfermo.
¡Llanto y Salud, amigos!
Esperad a los vientos
cargados de semillas 
y paisajes inéditos.
Floreced y arrancaos
la floración de nuevo,
vestidos inefables,
corazón, carne y huesos.
¡Llanto y Salud, amigos!
Frente al mar de los vientos
para ser vivos siempre
ser murientes eternos.


*****

A Serra Nevada


A catedral


A cidade vista da torre de vigília de Alhambra/ foto: Ludmila Ciuffi



A cidade vista da fortaleza de Alhambra


A fortaleza



A fortaleza


A fortaleza


A fortaleza



A fortaleza / foto: Ludmila Ciuffi


Porta do Vinho


Fachada do Palácio de Carlos V / foto: de Ludmila Ciuffi




Palácio Nazaries (Nasrid) / foto: Ludmila Ciuffi


Palácio Nazaries (Nasrid) / foto: Ludmila Ciuffi










Palácio Nazaries (Nasrid) / foto: Ludmila Ciuffi


Palácio Nazaries (Nasrid) / foto: Ludmila Ciuffi


Palácio Nazaries (Nasrid) / foto: Ludmila Ciuffi



Palácio Nazaries (Nasrid) / foto: Ludmila Ciuffi


Palácio Nazaries (Nasrid) / foto: Ludmila Ciuffi


Palácio Nazaries (Nasrid) / foto: Ludmila Ciuffi


Palácio Nazaries (Nasrid) 



A cidade vista do Palácio Nazaries





El Partal


Torre das Infantas


Pilar de Carlos V 


Porta da Justiça










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