Ao contrário da Itália e de Portugal, terras de pertencimento às
quais me ata um longuíssimo cordão umbilical, a Espanha me veio em pequenas
porções. Minha mãe, que tivera vizinhas e colegas espanholas quando morava na Mooca, foi quem me
deu a primeira lição do idioma: filho se diz “hijo”, folha se diz “hoja”. Haciase la luz. Então o
espanhol estava tão próximo do português que as diferenças podiam ser reduzidas
a certas regras de transformação fonética? Não
era bem assim, mas o iniciante precisava apoiar sua alavanca em algum ponto de
Arquimedes. Com isso, o espanhol veio a ser a segunda língua que eu li, pois o
italiano que se ouvia na minha casa, estropiado pelo analfabetismo e pela
velhice balbuciante do nonos Giovanni Battista e Angelina, era demasiado escuro
e sujo de terra, como costumam ser as raízes, ao passo que o espanhol era novo,
brilhante e tinha algo de fulminante.
Na década de 1970, assistir ao Jornal Nacional à espera da novela
das oito era um ritual para quase todas as famílias brasileiras que dispunham
de aparelho de tv. Meu pai só comprava jornais aos domingos. Revistas, só
aquelas com figurinos que minha mãe pudesse mostrar para as clientes que
estavam indecisas quanto à roupa que iriam encomendar. É pela televisão que a
Espanha nos chegava aos pedaços quase todas as noites. Os da minha geração
devem se lembrar daquele ano de 1973, que começou com a morte de Picasso e
terminou com o atentado do ETA que matou Luís Carrero Blanco, braço direito de
Franco. Uma época estava para se encerrar. Menos de dois anos depois, vi a
notícia da morte do Generalíssimo no Jornal Nacional.
O que se seguiu foi muito rápido e confuso para mim. A Espanha
voltou a ser uma monarquia, mas quem governava o país era Adolfo Suárez, cuja
pinta de cantor de tango contrastava com a sisudez do nosso general Geisel.
Enquanto Suárez convocava as agremiações políticas e sindicais para negociar os
pactos de Moncloa em 1977, vivíamos aqui os momentos tensos da nossa abertura
gradual feita em slow motion para não assustar os homens das
casernas. Quando ficou pronta a nova constituição democrática da Espanha no
final de 1978, eu estava mais preocupado em acompanhar à noite as discussões
entre Spock e McCoy em Jornada
nas Estrelas, motivo pelo
qual também não percebi que, a partir de 1º de
janeiro de 1979, estávamos livres do Ato Institucional nº5.
A Espanha apareceu
outra vez no Jornal Nacional em
fevereiro de 1981. A inflação galopante e os atentados do ETA pareciam demonstrar
a impotência da democracia em
manter a ordem pública. Ao menos era o que parecia aos membros da Guarda Civil
que invadiram o Congresso dos Deputados e dispararam suas carabinas para cima
exigindo silêncio e obediência, mas o alzamiento de 1936 não se repetiu. Ao desautorizar a intentona no dia
seguinte, o rei Juan Carlos mostrou uma decência
que não se via entre os Bourbon desde os tempos de Henrique de
Navarra. No mesmo ano do golpe malfadado, foi a vez de dois
terroristas de quartel tentarem explodir um carro-bomba na
frente do Riocentro no show do Dia do Trabalho. O sargento e o capitão, por
demasiado afoitos ou incompetentes no manejo da matéria explosiva, subitamente
viram-se diante dos portões do país desconhecido do qual ninguém volta. O alzamiento de 1964 não se repetiu.
Entre a
Copa do Mundo e a Olimpíada de Barcelona, a Espanha viu o fundo do poço do desemprego, a
recuperação “milagrosa”, o ingresso na Comunidade Europeia, o Oscar
de Filme Estrangeiro de 1983, o Nobel
de Literatura de 1989 e a consagração de Almodóvar como o expoente de um país sem recalques. O Partido Socialista
Operário Espanhol, tendo à frente Felipe González, era um modelo de esquerda pragmática, disposta a abandonar da luta de classes em nome da
governabilidade, como fará, na
década de 90, Tony Blair à
frente do New Labour.
Durante os anos de “milagre” espanhol, os bancos espanhóis se tornaram
poderosos e o imenso conglomerado estatal da
Rumasa foi desmembrado e privatizado. Os socialistas espanhóis pareciam ter
encontrado a receita de sucesso para uma economia faminta de democracia e desenvolvimento. Tratava-se de uma combinação de welfare state socialdemocrata (inspirado de longe pelo modelo
sueco que nós, brasileiros, também cobiçávamos), práticas neoliberais de incentivo ao capital rentista e ao
consumo dos segmentos médios (já colocadas
em prática no Chile, na Grã-Bretanha
e nos Estados Unidos) e promoção de uma cultura laica e cosmopolita. No Brasil de meados dos anos 80,
muitas figuras de centro-esquerda, especialmente as que viriam a fundar o PSDB,
expressavam admiração pelos
acordos de Moncloa e pelas conquistas de Felipe González.
Essa Espanha, que volta e meia entrava em casa através da televisão, marcou-me a adolescência e o início da vida adulta. No curto governo de Calvo Sotelo, eu era
um jovenzinho de família operária e católica. Entre
meus colegas de escola, o filme era Mad Max e a música, Another
Brick on the Wall. Todos éramos mais ou menos punks quando Guernica, de Picasso, passou a
ser definitivamente exposta em Madrid. Na Copa de 82, eu ouvia The Police e iniciava meu caminho para a filosofia. A Espanha
entrou na Comunidade Europeia quando começavam minha vida universitária e o namoro com Ludmila. No auge do sucesso de Mujeres al borde de um ataque de
nervios, que tornou Pedro Almodóvar mundialmente famoso, eu estava
enfronhado em Nietzsche, Marx e Freud. No quinto centenário da chegada de
Colombo à América, quando se celebraram as Olimpíadas de Barcelona, eu já era
professor e apoiava meus alunos “cara-pintadas”, que saíam às ruas para pedir o impeachment do presidente Fernando Collor. Durante os anos da socialdemocracia
brasileira, instalada por Fernando Henrique Cardoso e continuada por Luís Inácio Lula da Silva, enquanto o
Brasil corria para integrar o clube das nações mais ricas do mundo, sucessivas ondas de "reconquista ibérica" trouxeram a Telefónica,
os bancos Santander e BBV,
a seguradora Mapfre e dezenas de outras empresas espanholas. Além disso, nossos craques, antes destinados às prestigiadas equipes
italianas, passaram a ser adquiridos em transações milionárias pelas duas novas potências do futebol mundial: o Real
Madrid e o Barcelona.
No entanto, a Espanha sofreu graves reveses. O atentado na estação madrilenha de
Atocha, que matou quase duzentas
pessoas em março de 2004, abriu um novo período de terrorismo na Europa. A
crise do sistema financeiro internacional de 2008 colocou o povo espanhol sob o jugo da Troika, apelido dado ao Cérbero cujas cabeças são a Comissão Europeia,
o Banco Central Europeu e o FMI. Contudo, ao desembarcarmos em Madrid
em janeiro de 2015, tudo indicava que o pior momento ficara para trás. O governo conservador de Mariano Rajoy
pôde anunciar alguns discretos sinais de recuperação econômica, embora o taxista com quem
conversamos não estivesse tão animado. A maior novidade, porém, é que, numa Europa acossada pela
extrema-direita, a Espanha viu a rápida ascensão da esquerda
novíssima representada pelo Podemos, cujas práticas e propostas a esquerda brasileira em crise tenta compreender e assimilar. A história continua a nos dar lições a
partir da Espanha.
Eu não amo
Madrid. A Catedral de Almudena é um bloco de mau gosto gris, pesado em
português e em espanhol. Os duraznos do Mercado de San Miguel souberam-me a
mangas. A Gran Via na altura de Callao é uma Times Square rastaquera, com a
marca enfática das modernidades
de imitação. El churro con chocolate no me ha
encantado e estou disposto a
encarar a eternidade sem provar outra vez o cocidito
madrileño. Definitivamente esta não é a minha cidade, mas gosto do
sotaque castizo e tenho enorme simpatia pela
juventude ochentera que, durante a Movida Madrileña, enchia as
ruas de Malasaña, bairro boêmio de majos,
chulos y chisperos desde os
tempo de Goya. Esses jovens que, em Madrid como em São Paulo, eram desprezados
como a blank generation são agora uns cinquentões como eu,
punks tardios que, apesar do aburguesamento, ainda levam a sério aquela outra
Madrid da qual Antonio Machado, que aqui morou por tantos anos, escreveu:
“Como y por qué el pueblo, precisamente el pueblo madrileño era el menos
surpreendido por la traición fascista, y el más dispuesto a combatirla, es algo
que los historiadores del porvenir nos explicarán, acaso, algún dia”.
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